Cancro com falta de médicos

Vários hospitais têm falta de oncologistas. Só há 140 por ser uma especialidade recente e ter elevada taxa de abandono . E a falta de uma rede de referenciação oncológica agrava o problema.

num país com 43 mil novos casos de cancro por ano, a escassez de médicos oncologistas está a preocupar médicos e doentes. neste momento, existem só cerca de 140 clínicos com esta especialidade – quando o ideal seria haver mais cem oncologistas.

«com uma população envelhecida, vamos ter ainda mais casos de cancro; isso é absolutamente inevitável» , alerta a chefe de serviço do registo oncológico regional sul, ana miranda, lembrando que o « cancro é uma doença que consome muitos recursos» .

«os serviços e as decisões políticas vão ter de ter isso em conta» , defende ana miranda.

ainda recentemente, o hospital de santarém teve de adiar consultas e tratamentos de quimioterapia devido à falta de médicos e a uma ruptura de stock de medicação. a área de oncologia daquela unidade hospitalar conta apenas com dois médicos – um que trabalha um dia por semana e outro que trabalha dois – para acompanharem entre 600 e 700 doentes.

a administração do hospital de santarém admitiu o problema e indicou estar a tentar contratar médicos recém-formados.

mas a situação que se vive no hospital de santarém não é inédita no país. «em regra, todos os serviços hospitalares com maior procura, à excepção dos ipo, estão com carência de médicos oncologistas» , adverte jorge espírito santo, ex-presidente do colégio de oncologia da ordem dos médicos. este médico explica que «para se ter um valor mínimo, para além dos 140 oncologistas que estão em actividade plena, seriam precisos mais entre 80 a 100» no país.

barreiro com dificuldades
jorge espírito santo lembra que um oncologista «não é só uma máquina de fazer consultas» , dedicando-se ainda à «investigação, formação e participação em congressos» . e que, por isso, estes especialistas acabam por estar sobrecarregados de trabalho nos seus serviços. «o tempo de trabalho não se avalia só pelas consultas nos hospitais de dia; em regra, os hospitais com maior volume de trabalho estão todos em carência» , acrescenta.

para além das preocupações expressas pelos profissionais de saúde, também os utentes têm mostrado apreensão face à carência de oncologistas. há dias, cerca de 50 pessoas fizeram uma vigília junto ao hospital do_barreiro pela defesa do serviço de oncologia, exigindo mais clínicos. «existem muitas pessoas para consultas e os médicos têm que fazer cada vez mais horas para dar resposta às necessidades._disseram-nos que vai entrar um oncologista, mas precisamos de, pelo menos, mais dois» , manifestou, durante a vigília, em declarações à lusa, cristina santos, doente oncológica que faz parte do movimento de utentes do hospital do barreiro.

ao sol, fonte oficial admitiu que o centro hospitalar barreiro/montijo «foi confrontado com uma redução de médicos especialistas de oncologia, tendo por isso desenvolvido todos os esforços para encontrar médicos desta especialidade disponíveis para contratação» . o novo médico irá entrar em funções a 19 de novembro.

neste momento, a unidade de oncologia daquele hospital – que em 2011 realizou 14100 consultas e 9000 sessões de hospital de dia – conta com quatro especialistas a tempo inteiro (três oncologistas e 1 hemato-oncologista), um oncologista a 20 horas semanais e sete internos da especialidade.

especialidade com muitas desistências
a justificar a falta de especialistas na área da oncologia estão vários razões. uma delas é o facto de se tratar de uma especialidade recente em portugal – só foi criada em 1994. por outro lado, diz jorge espírito santo, «não houve a abertura de vagas suficientes» . « só a partir de 2010, é que passaram a haver 25 vagas» , ilustra.

para além disso, há casos de médicos que vão para oncologia e depois acabam por desistir e mudar de área. «é uma especialidade difícil, com uma taxa de abandono elevada» , conta o ex-presidente do colégio de oncologia. outro factor preocupante é o facto de, no seio dos clínicos desta área, «a pirâmide etária estar desequílibrada» . «há um grupo relevante de oncologistas com mais de 50 anos» , destaca jorge espírito santo.

no hospital de faro – uma das várias unidades hospitalares com carências em várias especialidades, incluindo oncologia –, a média de idades dos oncologistas é precisamente de 50 anos. ao sol, a chefe de serviço daquela especialidade, irene furtado, diz não estarem em situação de ruptura, mas admite a falta de clínicos.

«somos quatro oncologistas a tempo inteiro e fazemos um esforço para conseguir gerir o serviço e não termos lista de espera para consulta ou tratamento» , conta. para a médica, o hospital de faro deveria ter «mais três médicos oncologistas» . por ali, em média, por ano, há mil doentes em quimioterapia e 3500 a 3700 a serem seguidos em consulta.

a chefe do serviço sublinha ainda que trabalhar em oncologia «é psicologicamente muito desgastante e trabalhoso» . e por isso confirma que já viu jovens médicos desistirem daquela área: «os meus primeiros internos desistiram de oncologia» . o_que vale, diz irene furtado, é que o hospital tem agora seis internos em formação e um deles – que termina a especialidade para o ano – tem vontade de ali continuar.

‘rede de referenciação oncológica é essencial’
para irene furtado, «a falta de planeamento» está na origem da escassez de oncologistas em vários hospitais do país. a mesma opinião é defendida pelo presidente da liga portuguesa contra o cancro, carlos oliveira: «há necessidade de mais oncologistas, mas há má distribuição de médicos e os hospitais maiores têm de articular-se com os mais pequenos» .

para carlos oliveira, «a rede de referenciação oncológica é essencial e ajudará a resolver o problema da falta de médicos» . em declarações ao sol, o presidente da liga afirma que a troika veio ‘obrigar’ a fazer o que já deveria ter sido feito: «toda a gente fala mal da troika. mas eu falo bem porque, graças a uma imposição da troika, iremos ter a rede de referenciação oncológica, que terá de estar definida até ao final do ano».

já em abril deste ano, um grupo de oncologistas alertou para a urgente necessidade de reorganizar os cuidados de saúde na área do cancro. «não existe um plano oncológico colocado em prática, não existe uma rede de referenciação oncológica, não existem normas de orientação terapêutica, que poderiam poupar milhões ao estado» , criticou, na altura, em nome do grupo de especialistas, o médico antónio araújo, do instituto de oncologia do porto.

o presidente da liga portuguesa contra o cancro lembra ainda que, para além da falta de oncologistas, se verifica também uma escassez de hemato-patologistas e radioterapeutas.

liliana.garcia@sol.pt