como surgiu a ideia de ir à coreia do norte?
tenho viajado bastante. a partir de certa altura impôs-se a escrita de viagens. o centro temático do que escrevi até aqui é o que me é próximo. se quisermos encontrar uma região que se associe à minha obra é o alentejo, onde nasci e cresci. quis procurar experiências, temáticas e cenários diferentes. a coreia do norte era diferente de forma extrema. esperava encontrar algo que me fizesse reflectir, que abanasse o meu mundo.
mas entre o alentejo e a coreia do norte há uma panóplia imensa de opções.
sempre tive interesse na realidade de países como a coreia do norte. e não é como se saísse de uma aldeia no alentejo e fosse à coreia do norte. há duas semanas acabei um ciclo de viagens: num mês fui ao brasil, macau, canadá e índia. o livro está ligado à minha experiência. não há a certeza da verdade, é um país enganador, com muitos jogos de espelhos, ilusões, alucinações, que fazem com que se duvide do que se vê e do que nos é contado.
receava a viagem. não partilhou onde ia. porquê?
existem ideias feitas e preconceitos em relação ao país que não sabia se deveria desmontar porque não tinha a certeza da sua validade. e fiquei mais receoso quando, em dezembro do ano passado, morreu kim jong-il, o líder incontestado e único da coreia do norte, o que colocou o país numa grande indefinição. achei que podia haver necessidade de provar algo à ordem internacional. para um estrangeiro, isso tanto pode ser uma vantagem como uma desvantagem.
fala-se de reféns…
em japoneses desaparecidos, que terão sido sequestrados pela coreia do norte, que o rejeita. mas há sinais que a incriminam.
não podia levar material impresso. mas decidiu levar o dom quixote.
foi um risco calculado. não é directamente subversivo, o que poderia ser uma atenuante. e era em português. receia-se que se tente fazer alguma espécie de proselitismo, religioso ou político. alguns já o tentaram, o que trouxe situações desagradáveis.
deixou o telemóvel à entrada do país. isso fez-lhe bastante impressão. porquê?
era um símbolo. habituámo-nos a estar sempre contactáveis. quando isso se perde, fica a insegurança.
assinou um papel em como não escreveria nada, o contrário da sua intenção.
não era viável esconder que escrevia livros. assumi-o desde o início. mas fiz saber que não era jornalista. ou não ia ou assinava o papel. assinei-o contrariado, achando que não teriam direito de, depois, me impedirem de dizer o que vi. quando cheguei fui averiguar qual a validade do documento em termos legais. não é muita. há um valor superior: a liberdade de expressão.
qual foi a sua primeira grande impressão ao chegar?
a constatação de lá estar, que nunca dei por garantido. houve um momento em que a agência me enviou um e-mail a dizer: ‘não podemos garantir que o percurso que se pensou fazer seja feito. pode desistir agora’. foi perturbador. estava em causa não só a viagem como a intenção de escrever um livro.
a viagem foi organizada por uma agência de viagens chinesa. é a única forma de lá entrar como turista?
não, existem agências na holanda, frança e china. só que as viagens são mais curtas, de cinco dias. não há turismo de massas. fui com um grupo de 20 pessoas que, numa parte da viagem, teve de ser dividido. não havia possibilidade de sermos hospedados todos em certas cidades. e as estradas não suportavam veículos onde fôssemos todos.
sublinha várias vezes ser contra todos os regimes totalitaristas e ditatoriais. por que sentiu essa necessidade?
achei importante. li muito sobre a coreia do norte e muitas coisas faziam a apologia do país e do regime. mas é um regime violento, cruel, que merece a nossa condenação, por mais interessante que seja avaliar um extremo a que uma sociedade pode chegar, avaliar um extremo a que a natureza humana pode chegar, sob a perspectiva da crueldade e da prepotência e da submissão.
diz que a coreia do norte não é um regime comunista. porquê?
não tenho nenhuma intenção de desculpabilizar as ditaduras comunistas que não são, em aspecto nenhum, melhores do? que quaisquer outras. sou contra todos os tipos de ditaduras. há um livro sobre a coreia do norte, que cito, de um senhor chamado myers, sobre a sua ideologia. confirmando o que li com o que vi, é sobretudo nacionalista e racista.
em que sentido?
promove tudo o que é coreano e a raça coreana em detrimento das outras. os inimigos, como o japão ou os estados unidos, são demonizados a partir de uma perspectiva racial. as ditaduras ditas socialistas sempre fizeram uma distinção entre a população e os seus dirigentes. no caso da coreia do norte, até as crianças americanas são representadas como facínoras. o único país, dos inimigos declarados da coreia do norte, em que existe uma distinção clara entre a população e os dirigentes é a coreia do sul, em que os dirigentes são retratados como fantoches ao serviço dos eua ou do japão, mas a população é vista como irmã, algo que foi separado artificialmente mas que um dia se reunirá. parece-me que no momento em que as coreias foram divididas e que kim il-sung começou a organizar o país, foi empurrado pela ordem internacional para esse lado. o mundo estava dividido, tinha de encontrar uma forma de sobreviver. havia uma guerra, precisava de apoio. veio desse lado.
os princípios do socialismo não estão lá?
são aplicados mas creio que são uma forma de organização, não um valor ideológico.
mas há a percepção de que é um país comunista. tivemos a polémica de o pcp não o condenar.
ainda existe um mito em relação a isso. o pcp não apoia o regime da coreia do norte. foi próximo, mas que já não é.
o que mais o surpreendeu na viagem?
tive uma margem de liberdade maior do que imaginei. existem algumas bolsas de descanso. as pessoas riem-se com gosto. dançam e cantam. e as trocas de afecto são muito mais visíveis no quotidiano da coreia do norte do que aqui.
teve contacto com o quotidiano das pessoas? percebeu, por exemplo, como se casam?
os casamentos são livres. as pessoas casam-se com quem querem. mas há coisas que entram em consideração para essas escolhas, como a posição social. o que também acontece aqui. é o normal. namoram e casam. e o estado garante-lhes uma casa.
uma casa?
tem muito que se lhe diga. morar-se na capital só está acessível a alguns, a uma elite. e tudo é definido pelo estado: onde moram e em que condições.
o estado está presente em tudo?
sim. a roupa é fornecida pelo estado, a comida também, quase não há comercio.
e há igualdade de género?
teoricamente sim, mas as mulheres têm papéis muito definidos, atribuídos por questões tradicionais, relacionadas com os filhos.
aqui também.
sem dúvida. já morreram 36 mulheres este ano [vítimas de violência doméstica].
é comum, por exemplo, encontrar mulheres no exército?
sim. na construção civil e no exército. mas os papéis são bem definidos.
as pessoas não sabem que há outro mundo. pareceram-lhe felizes?
é muito difícil avaliar a felicidade dos outros. muitas vezes não depende do quanto se tem. mas acredito que é muito difícil ser feliz passando fome, como me pareceu acontecer nalguns lugares daquele país. esse aspecto é determinante: o facto de se desconhecer completamente aquilo que é o mundo exterior, ou o facto de se ter uma ideia do mundo exterior que não é a real e que coloca a coreia do norte como o país mais desenvolvido do mundo, que leva as pessoas a crerem-se privilegiadas.
acredita-se mesmo nisso?
penso que sim. não circula qualquer cultura no país, excepto a propagandística, a promover a coreia, os valores da coreia, a obediência e o respeito pelos líderes.
como são vistos os americanos na coreia do norte?
toda a gente acha que os americanos os invejam e que são forças do mal, que são intrinsecamente maus do ponto de vista moral, enquanto os coreanos são intrinsecamente bons e vistos como um povo escolhido. muitas vezes mostram-nos coisas acreditando que nós ficamos impressionados. mas temos que empregar uma certa diplomacia. não podemos questionar aquilo que nos é dito, não podemos discordar quando nos dizem que os líderes são extraordinários, não podemos debater isso.
como foi viver duas semanas assim?
houve duas partes. quando começou a chover, o país, que é bastante cinzento, tornou-se mais cinzento ainda. a primeira parte vivi-a com entusiasmo pela descoberta. a segunda com muito cansaço.
qual o momento de transição?
o aspecto do clima foi importante, coincidiu com uma altura em que estive quatro dias fora da capital que foram muito penosos. fomos para regiões onde não iam estrangeiros. via-se uma pobreza muito grande. estive em países africanos com muita pobreza, na costa do marfim, na índia. mas aquela pobreza é diferente, não é assumida, tenta-se esconder. aguenta-se com grande estoicismo mas há sinais muito duros.
como quais?
no caso das crianças ou dos velhos, a sua grande fragilidade. percebe-se que estão mal alimentados, estão mal vestidos para aguentar as temperaturas nesses lugares a norte onde neva.
impressionou-o mais que a pobreza da índia?
sim, é acompanhada de toda a opressão de um mundo que está fora do mundo, da ignorância do que existe fora dali.
achou que era tudo um teatro?
é frequente quererem impedir-nos de olhar em volta, dizerem-nos: ‘tens que olhar nesta direcção’. houve momentos em que, se fosse aceitável, nos teriam vendado. havia coisas que não queriam que víssemos. a justificação era que não queriam que se visse a pobreza. mas muitas vezes essa pobreza não era assim tão evidente. não se podia fotografar ou filmar em movimento. e mesmo em certos lugares havia restrições. às vezes nem havia nada de muito chocante a acontecer. noutros aspectos assiste-se mesmo à encenação e é até um pouco triste.
por exemplo?
em pyongyang, há a loja n.º 1 e a loja n.º 2. são armazéns com produtos chineses, a maior parte deles impossíveis de encontrar noutros lugares da coreia do norte. não há lá ninguém além dos trabalhadores. e é-nos dito que são lojas normais e que são aquelas as lojas onde as pessoas vão comprar o que precisam. é tão evidente que isso não é verdade que chega a ser deprimente.
conta que viu numa fábrica uma senhora fingir fazer experiências químicas…
é patético. uma mesa, no meio de uma sala, completamente vazia, com uma balança de pesos e uma senhora a misturar um pó branco com água não é o mesmo que estar a fazer experiências.
a viagem pesou-lhe?
tudo era estranho, diferente, específico. uma visita à coreia do norte é muito menos uma visita de fruição dos sentidos do que do intelecto. é uma visita muito intelectual. a natureza é fascinante, mas o que mais individualiza o país é a sociedade.
viaja por gosto ou pela profissão?
na maior parte dos casos tem que ver com a apresentação de livros meus e a participação em festivais literários no estrangeiro. depois de escrever este livro num tão curto espaço de tempo fiquei com vontade de estar mais tempo em casa e escrever mais. mas as viagens, sendo concorrentes com a escrita, também a alimentam.
está a escrever um novo livro?
estou a pensar nisso. as ideias que tenho vindo a desenvolver são para um romance. a escrita já começou há algum tempo, não no papel, mas na cabeça e nos projectos.
e a literatura de viagens, é para continuar?
tenho vontade de fazer mais viagens como esta, igualmente imprevisíveis e que, dependendo das características do lugar, me permitirão outras formas de escrita e outras formas de retratar a própria experiência. mas não quero dizer quais são.
os destinos serão novamente ditaduras?
não sei, ainda não está totalmente definido. mas tenho vontade de que este livro seja o início de uma série, mesmo que sem periodicidade definida. e vai ser.
tem uma legião de fãs no facebook e no instagram. por que lhe interessam tantos as redes sociais?
é uma forma excelente de comunicar. há um grande número de pessoas a seguir o que faço por essa via, alimento muito essas redes. coloco textos, muito material do que faço e dos meus interesses. e descobri a fotografia através do instagram. nunca tive, nem tenho, a intenção de ser fotógrafo. mas neste livro tenho uma fotografia tirada por mim na capa. algo que nunca esperei que acontecesse.
tem milhares de seguidores. é uma forma de chegar a novos leitores?
sim. e coloco lá textos que são publicados em lugares que não têm um acesso muito óbvio, às vezes fora de portugal, textos que publico na imprensa, entrevistas como esta.