isto é assim, também, por que as memórias, sentimentos e ressentimentos dos que se sentem vencidos ou injustiçados pela marcha ou sentido da história também persistem. e alimentam essas imagens. sei do que falo.
a nossa geração, em portugal, teve uma experiência assim. mas também por isso sei que não devemos transmitir às outras, às novas gerações, essas memórias amargas e negativas, deixar-lhes um legado de desgraças, pesado como uma dívida soberana da europa do sul.
faz mais sentido, por muito que custe, ‘começar de novo’. ‘começar de novo’ é que vai valer a pena – como na canção do ivan lins e da simone. vale quase sempre.
escrevo isto depois de folhear o portrait of a new angola, um belíssimo livro que, em palavras e sobretudo imagens, pretende ultrapassar os clichés de 40 anos e mostrar o outro país, a outra angola.
eu conheço angola desde os últimos tempos da administração portuguesa em 1974, a do milagre económico, até à guerra de 30 anos, e aos anos da reconstrução. e tenho amigos de todas essas angolas, de todos os tempos e espaços políticos, do poder e da oposição, guerrilheiros, ex-guerrilheiros, generais, políticos, brancos, negros, mestiços, comunistas, nacionalistas, democratas. todos angolanos.
a ‘diabolização’ persiste porque os grupos em luta política em angola usam portugal e a opinião pública portuguesa como reflectores e instrumentos. foi assim desde o tempo da guerra civil e não é esquisito que assim seja.
o problema é que, estes clichés ditados pela política fazem persistir uma imagem distorcida do país e do povo, uma imagem exclusiva dos desastres da guerra, das crianças e cadáveres com moscas, dos homens armados, senhores da terra e do saque. e isso, em grande parte, já lá vai.
posso dizê-lo pois, de há meia dúzia de anos para cá, percorri todas as províncias de angola (com excepção do cuando-cubango que conheci bem na guerra civil). hoje há outra angola.
é esta outra angola que um português de angola e angolano de portugal – helder bataglia – quis dar a conhecer ao mundo. fê-lo neste livro que, sem entrar em polémicas do certo ou incerto, do bem ou do mal ideológicos, mostra, pelas imagens, pelos números, pelas palavras, o esforço da reconstrução física do país – das cidades, das infra-estruturas, da indústria, da agricultura. e das mulheres e homens sem nome – 18 milhões – que são os protagonistas desta reconstrução.
é isto que importa hoje. o resto, a polémica histórica, ficará para os historiadores. o povo, que teve que viver a tragédia, teve já a sabedoria do esquecimento que, como ensinou renan, é tão importante para a vida em comum, como a sua memória.