David Mitchell: ‘O canibalismo é uma metáfora’

Publicado no Reino Unido em 2004, Atlas das Nuvens foi um sucesso. Seis histórias em tempos diferentes, interrompidas a meio e mais tarde retomadas. David Mitchell recebeu rasgados elogios da crítica e foi finalista do Booker Prize. O filme, realizado pelos criadores de Matrix, os irmãos Andy e Lana Wachowski, e Tom Tykwer, já estreou…

este romance tem uma estrutura inovadora. como surgiu a ideia?

por curiosidade. queria ver como ficaria um romance interrompido seis vezes com uma outra história e que, na segunda parte, completasse as narrativas. queria ver o resultado, como um miúdo a brincar com legos.

diz que se inspirou em italo calvino para a escrita. em que medida?

ele foi até meio do caminho naquela que é, talvez, a sua melhor obra: e se numa noite de inverno um viajante. escreveu um livro de narrativas interrompidas mas nunca voltou atrás para as retomar. pus um espelho no fim do seu livro e isso deu-me a estrutura.

são seis narrativas com personagens distintas, em tempos diversos. podiam ser romances em si mesmas. por que não fazer seis livros?

e eu podia ter sido pago seis vezes em vez de uma. sou louco. faço sempre isto. escrevo romances ineficazes financeiramente.

como surgiram tantas histórias?

algumas vezes por ano tenho ideias para novelas. escrevo-as num papel porque são a minha fonte de rendimentos. trato-as com muito cuidado, ficam guardadas até ter tempo para as trabalhar. por isso tenho um armazém com uma provisão de histórias. foi uma questão de olhar para elas e perceber como se podiam relacionar.

e porque se decidiu por seis?

tinha nove quando comecei. mas isso seria um livro de mais de 800 páginas. e há limites anatómicos para o trabalho de um romancista. há muito poucos bons romances de mais de 600 páginas. se não for muito bom torna-se aborrecido. e basta ser-se chato uma vez para a maravilhosa bolha de ficção se rebentar. seis é um bom número. é bonito, simétrico, múltiplo de três. um número amarelo, claro como o sol. os números primos são escuros.

como foi o processo de escrita?

escrevi todas as histórias de uma assentada, na ordem pela qual estão no livro. mas sabia onde iriam ser interrompidas – em momentos cruciais. acabei a sexta história, passei cerca de 20 minutos no meu computador a usar a ferramenta de copiar colar e pronto. gosto de provocar os realizadores do filme e dizer-lhes que enquanto a sua pós-produção demorou nove meses, a minha foi de apenas 20 minutos.

pensa nos leitores enquanto escreve?

não posso. confio que se interessem pelo que me interessa a mim. gosto do tipo de ficção que tem ideias mas que não é um ensaio em prosa. as personagens e o enredo são importantes. as ideias são uma espécie de vitamina c, que previne o aparecimento de doenças como o escorbuto intelectual. o prazer vem de nos preocuparmos com uma personagem. por isso é que quando estamos a ler um bom livro, viramos página atrás de página. e isso acontece apenas por uma razão: receamos que algo de mau aconteça à personagem. é o que gosto de ler, é o que escrevo. e tenho a minha mulher, que é a minha arma secreta: uma mãe ocupada e cansada. se ela gostar da história, confio nela. é a pessoa que se senta no banco do passageiro a olhar pela janela para dizer se é seguro virar. eu também olho, mas ela está lá no banco do passageiro do escritor.

hoje atlas das nuvens é talvez um livro mais acessível que em 2004. estamos mais habituados a narrativas fragmentadas. na altura, pensou que poderia ser um risco?

era novo e muito estúpido. ainda sou um bocado estúpido. mas na altura era mais. simplesmente não pensei em como poderia ser recebido. ou talvez não seja estupidez, talvez seja, como dizia há pouco, uma questão de confiar nas pessoas, que se vão interessar pelo que me interessa. dizemos que os romances fragmentados são hoje mais comuns. mas acho apenas que alguns se tornaram populares. basta olhar para a literatura europeia e mundial para perceber que sempre se escreveu assim. as mil e uma noites, dom quixote, os contos de cantuária. os proto-romances da literatura europeia e mundial eram fragmentados. nada é realmente novo depois dos dramaturgos do século xvii.

com esta estrutura há o risco de perder o leitor na transição de uma secção para outra. como o evitou?

usei cola: temas e ideias. todas as narrativas são sobre um determinado tipo de exploração: de um indivíduo sobre outro, de uma tribo sobre outra, da sociedade sobre o indivíduo, de uma corporação sobre a sociedade, um estado sobre os seu cidadãos… ao saber que é uma viagem de ida e volta, sentimo-nos menos perdidos. há elementos da primeira narrativa que aparecem na segunda, da segunda na terceira e por aí fora. foi um risco. se os leitores confiam no autor, gostam do exercício. mas atlas das nuvens é, de longe, o meu romance mais bem sucedido. sozinho vendeu mais que todos os outros juntos.

ao longo das várias narrativas escreve em vários géneros diferentes – diário, thriller, ficção científica. porquê?

cada novela queria ser contada na sua própria voz. os géneros são os tipos de personalidade da ficção. as personagens têm que ser diferentes umas das outras, senão são todas o mesmo hobbit. em atlas das nuvens, cada novela é uma espécie de personagem. os géneros dão a cada uma destas personagens-novela uma personalidade distinta.

o canibalismo tem um papel importante no romance, bem como a crítica ao capitalismo. há uma ligação?

o canibalismo é uma metáfora para o capitalismo e o capitalismo é uma metáfora para o canibalismo. há uma palavra latina para o consumo da nossa própria carne, da qual não consigo lembrar-me. quando um canibal come a sua própria perna, por exemplo. a nossa maravilhosa civilização dá-nos vidas muito mais fáceis do que a dos nossos antepassados. tenho medo de que esta civilização global, a que podemos chamar ocidente ou capitalismo pós-moderno, esteja a devorar a capacidade do nosso planeta de sustentar o homo sapiens, a nossa extraordinária, miraculosa e senciente espécie. seria negligente não nos preocuparmos com isso, se queremos que os nossos bisnetos tenham a mesma qualidade de vida que nós. temos que votar em políticos que se preocupem com isso.

escreveu o livro em 2004. a questão é agora ainda mais pertinente.

sim. mas não se deve ao facto de eu ser um nostradamus extraordinário. é óbvio que as questões ligadas ao impacto do nosso consumo irresponsável serão cada vez mais pertinentes. é uma forma muito fácil de estar certo.

alguma vez imaginou que o livro viesse a ser adaptado ao cinema?

quando o estava a escrever tinha a certeza de que nunca poderia ser um filme, quando compraram os direitos questionei-me sobre o assunto, e ao perceber quem seriam os realizadores pensei que se alguém o poderia fazer eram os criadores do matrix. e aqui estamos. está feito.

esteve envolvido na adaptação?

não. sou um romancista, não um argumentista. é uma arte diferente. estou demasiado apaixonado pela arte de fazer romances para me envolver numa relação adúltera com a escrita de guiões.

gostou do filme?

sim, estou muito feliz com ele. o que é um grande alívio, porque posso dizer coisas boas sobre ele em público. seria muito deprimente se tivesse que ser evasivo.

como foi ver as suas personagens ganharem vida no ecrã?

nos primeiros cinco minutos foi um orgasmo ontológico. um enorme: ‘uau, eu escrevi isto!’. mas os realizadores e os actores fazem isto todos os dias. transformam indivíduos textuais em indivíduos visuais. portanto foi normal para toda a gente. acabei por ser infectado por essa normalidade rapidamente. agora, foi óptimo que os realizadores conhecessem o livro melhor que eu. ao ver o filme, muitas vezes perguntava se era um fala escrita por eles ou por mim. e respondiam-me: ‘é tua, idiota, foste tu que a escreveste’.

rita.s.freire@sol.pt