‘Todos seremos esquecidos’

Tudo tem um fim. Um Homem Inquieto é o derradeiro romance protagonizado por Wallander. Henning Mankell conversou com o SOL sobre a mítica personagem. Agora, é um homem livre.

um homem inquieto é o último romance de wallander. porque quis acabar com a série?
tinha-o esquecido, até que percebi que podia existir outra história. depois desta, não resta nenhuma. sou velho o suficiente para saber que às vezes é preciso pôr um ponto final. mas estou muito feliz de ter escrito estes romances.

como wallander, chegou aos 60 anos.
quando envelhecemos, tudo muda. não temos a mesma energia, começamos a ouvir mal. lidei com isso melhor que wallander. ele queixa-se muito.

o que pensa de wallander?
nunca seriamos amigos próximos, pois temos interesses muito diferentes. nunca seriamos íntimos. íamo-nos sentar em silêncio. trabalhamos muito, gostamos de ópera italiana e pertencemos à mesma geração, mas não sei se teremos mais alguma coisa em comum.

este romance é muito íntimo, reflecte sobre o envelhecimento. porquê fazê-lo através de uma personagem com a qual não se identifica?
ao gostar muito de uma personagem, é difícil encontrar nela contradições ou lados negativos. é mais fácil escrever sobre alguém de quem não se gosta muito.

e é devido aos seus defeitos que nos apaixonámos por wallander.
sim, ele é muito humano, tem um lado bom e um lado mau. as pessoas são assim. se tivesse escrito sobre uma personagem apenas boa não acreditaríamos nela.

qual o seu traço de que menos gosta?
o modo como trata as mulheres. é muito patriarcal. e do modo de como se trata a si próprio, come e bebe demasiado. há muitas coisas nele de que não gosto.

e do que gosta?
do facto de ter muita energia. trabalha imenso e tem sólidos princípios éticos, é sério e inteligente. tem muito boas características.

este livro é muito triste. porquê?
a vida é triste, trágica. e não a vivemos completamente se não tivermos essas dimensões. essa é uma das razões por que wallander é tão popular, pelas coisas más que lhe acontecem.

wallander teme desenvolver alzheimer. isso preocupa-o?
preocupa toda a gente. se me sentar consigo e uma terceira pessoa, sabemos que um de nós vai ter alzheimer. preocupa-me perder a cabeça enquanto estou fisicamente em forma. deve ser horrível. é importante pensar nisso e viver uma vida em que usemos o cérebro tanto quanto pudermos.

wallander nunca se preocupou com política. mas ‘um homem inquieto’ é um livro muito político. porquê?
vivemos numa estrutura política, quer vivamos na suécia, portugal ou moçambique. foi preciso chegar aqui para ele perceber que é estúpido dizer que não está interessado em política. percebe algo que negou antes. essa é uma das principais ideias do romance. ao envelhecer, percebemos que já vivemos mais de metade da nossa vida e que todas as decisões mais importantes já foram tomadas. é normal olhar para trás para perceber o que fizemos com a nossa vida e wallander tenta ver o que fez com a sua. o que pode ser assustador.

e é aí que o livro se torna tão triste…
é humano. muitos vão poder reconhecer-se nessa tristeza e assustar-se com o que não fizeram na vida. eu sei que usei a minha vida e o meu tempo, e que vou continuar a usá-lo. mas pode ser problemático.

como nasceu wallander? alguma vez imaginou que iria escrever dez livros sobre ele?
nunca. escrevi o primeiro romance de wallander há 22 anos. achei que seria o único. mas percebi que ele era um instrumento que poderia usar outra vez. hoje, posso dizer que cerca de 25% do que escrevi é ficção policial protagonizada por wallander – 75% são outros romances, peças de teatro e argumentos. não estou preocupado com o seu fim. terei os meus leitores.

qual a razão para o seu sucesso?
muitas. a primeira é o que chamo a síndrome da diabetes. depois de três romances, perguntei a uma médica que doença lhe daria. ela disse-me diabetes. isso tornou-o ainda mais popular. não se imagina o james bond a ter diabetes, seria ridículo. mas wallander pode porque é como nós: mortal.

há muitos críticos literários que consideram a literatura policial um género menor. não partilha essa opinião…
usar o crime para olhar os seres humanos na sociedade é um dos mais antigos géneros literários. medeia é uma peça sobre uma mulher que mata devido a ciúmes. é uma história de crime. os críticos que o dizem são estúpidos, não sabem nada do seu trabalho. se john le carré fosse mais novo e tivesse continuado a escrever por mais 20 anos, poderia ganhar prémios literários muito importantes. deu-nos uma literatura incrível sobre a guerra fria. espero que me cite nisto: se estas estúpidas pessoas querem dizer esse tipo de coisas, deixá-las. demonstra bem a sua ignorância.

é director artístico do teatro avenida, em maputo. porque escolheu moçambique para viver parte do ano?
foi moçambique que me escolheu. há 25 anos, vivia na zâmbia e fui convidado para ir para maputo. tinham começado o teatro avenida e ouvido falar de mim. tem sido uma das aventuras mais fantásticas da minha vida.

como se apaixonou por áfrica?
há 40 anos, percebi que queria ter uma perspectiva do mundo fora da europa, o que me levou até áfrica. hoje continuo lá pela mesma razão: aprendo mais sobre o mundo tendo uma perspectiva europeia e outra africana. torna-me melhor europeu. é bom viver com um pé na neve e outro na areia.

quase todos os seus livros versam sobre questões sociais. porquê?
o único livro que posso escrever é o livro que eu próprio gostaria de ler. é importante falar sobre o passado, o presente e o futuro. podemos ver o que se vai passar daqui a uns anos e devemos falar sobre isso antes que aconteça. todas as histórias têm que falar da vida que as pessoas vivem e das razões pelas quais vivem assim. e as razões estão sempre no passado.

vê o mundo de forma negra. porquê?
os problemas que temos não são necessários, podiam estar resolvidos. já podíamos ter erradicado a malária há anos, já podíamos ter erradicado a iliteracia no mundo. decidimos não o fazer, isso zanga-me. sou um realista e o realismo diz-me que é uma coisa terrível que haja pessoas que ainda não saibam ler ou escrever. não é preciso que assim seja.

e por que acha que isso acontece?
as decisões não são tomadas de modo a que nos responsabilizemos pelos outros. todos pensam apenas nas próprias vidas. por isso vivemos num mundo tão desigual e injusto. a longo prazo, vamos criar um outro mundo, mais justo, senão ninguém irá sobreviver. já não estarei cá. mas preciso de acreditar que é possível.

é um dever moral de falar sobre isso?
é o dever moral de todos os intelectuais: olhar as coisas como são e falar sobre elas. reajo através da escrita, embora nalgumas situações seja necessários agir de outra forma, participar numa manifestação ou outra coisa qualquer.

cumpriu 60 anos. fez um balanço? será lembrado por wallander?
é um privilégio ter feito 60 anos, muita gente no mundo nem sonha com isso, morre por volta dos 35 a 40 anos. tenho uma vida maravilhosa e devo aproveitá-la enquanto posso. vou continuar a escrever, mas o que será lembrado não sei. no final, todos seremos esquecidos. quantos escritores de há 150 anos são ainda lidos hoje? porquê preocuparmo-nos com isso? vivemos agora. esta é a grande aventura.

rita.s.freire@sol.pt