A história de Jardim Gonçalves

O que entra traz sempre a esperança e o seu contrário. E é indiferente se falo de uma pessoa, parceiro de negócio, país ou um novo ano – a novidade, na maioria das suas formas, gera uma expectativa e até, tantas vezes, uma ilusão.

se estamos fartos de nos desiludir deixamos escapar oportunidades, aí as ilusões são vistas apenas como uma lenha que nos queimará em lume brando. se ainda temos vontade e coragem de viver com a porta entreaberta, sem receio de nos iludirmos, então estamos preparados para o que a vida nos trouxer. de bom e de mau. é um pouco assim que estou nesta entrada de 2013. com esperança da vida. e medo dela.

será o ano do lançamento da minha biografia de jorge jardim gonçalves. demorará ainda uns meses, coisa pouca para quem, como nós, já vai em quase cinco anos de conversas. disse biografia, mas não é absolutamente correcto, deveria ter dito memórias interpretadas, uma definição mais precisa.

não sei se estará já arrependido de me ter desafiado. nunca mo disse. quando o fez era presidente do conselho superior e de supervisão do bcp, na opinião pública não existiam ainda sinais de desgaste na relação com paulo teixeira pinto, chegariam poucos meses mais tarde. tínhamo-nos conhecido no funchal, num congresso organizado por uma casa de saúde mental – o banqueiro presidia à assembleia-geral da instituição e eu acabara de fazer um documentário na casa de saúde da idanha. combinámos voltar a estar.

almoçámos no banco uns meses depois. riu-se com o nó da minha gravata, desfê-lo, explicou como se fazia. fiquei a pensar na conversa. porquê, perguntei-lhe. a minha visão ideológica era claramente mais à esquerda do que à direita; a relação com deus existia mas não era intermediada pela igreja católica ou por qualquer outra religião; era divorciado; nunca estivera ou escrevera sobre economia ou sistema financeiro; adorava vencidos da vida e homens contraditórios. não seria a melhor pessoa para escrever da sua vida, o risco de não se rever seria uma evidência.

desvalorizou. achava que sim exactamente por todas as razões que lhe apontara – não queria que a sua vida fosse vista por alguém da economia nem por um beato ou conservador. desejava outra coisa. um livro para ficar, suficientemente sólido para resistir à voragem do presente. a opinião acentuou-se com o gastar dos meses. com a polémica no bcp e o arrastar dos processos em tribunal, jardim gonçalves reforçou a ideia de que a minha visão sobre a sua vida não poderia servir como instrumento de defesa, seria condenar o livro a uma fogueira mediática onde nada é possível redimir.

fiquei surpreendido. e agradado. a liberdade da minha interpretação fora a única condição que havia colocado, uma liberdade que se reforçou nestes anos. quase 500 horas de conversa gravada. cartas, fotografias, documentos que foram secretos ou ainda o são. cerca de 800 páginas. em que, capítulo a capítulo, a sua vida vai ganhando o sentido que lhe apreendi, que julgo ter descoberto. uma história que se dividirá entre jorge (o condecorado de guerra, o correligionário do opus dei, o marido e pai), e jardim gonçalves (o banqueiro mais importante pós-1974, o homem do poder e influência, as relações com a política e as finanças, o terramoto do bcp). todos os capítulos serão divididos em dois. num acompanharemos o primeiro, noutro o segundo.

o que mais lhe posso revelar? que todos os capítulos terminarão com um documento inédito ou praticamente inédito. que não será um livro jornalístico, académico ou cronológico. será o modo como vejo a história de um homem. que dividirei em dois para melhor o completar: jorge jardim gonçalves.

o primeiro capítulo, onde jorge é o protagonista, terá como cenário o funchal e quase tudo se passará à volta de uma sala onde bernardete e agostinho, seus pais, recebem filhos e netos. é uma espécie de despedida, logo verão porquê. ofereço-vos um bocadinho, os dois primeiros parágrafos, como forma de agradecimento por todas as mensagens de apreço que me têm chegado através de um jornal que me abriu as portas e deixou entrar. nunca o esquecerei.

começará assim:

«ver o pequeno rodrigo a tocar com o velho pai provocou-lhe um sentimento de que tudo fizera para que a família o visse como um filho sem mácula – não era bem uma questão de orgulho, talvez apaziguamento. a infância marcada pela partida do irmão agostinho para o seminário, os deveres exemplarmente feitos, as excelentes notas que o predestinavam a um futuro em sítios apenas imaginados, uma relação sempre próxima e sem abalos com deus e a igreja, a guerra colonial em que foi distinguido com a cruz de guerra por ‘actos heróicos em combate’, um bom casamento com uma mulher com idênticos princípios e quatro filhos bem sentados em cadeiras de vime a ver, como ele, o mais jovem dos irmãos a tocar acompanhado ao violoncelo pelo avô. não era bem uma questão de orgulho o que jorge jardim gonçalves sentia; mais o contentamento por estar no funchal acompanhado pela maioria dos que eram parte de si.

viviam-se os primeiros anos da década de 1980. foi num fim da tarde, antes do jantar. uns sentados, outros de pé e a mãe bernardete, combalida e queixosa, deitada num quarto de dormir onde morava o piano e tocava o seu pequeno neto. as portas estavam abertas para a sala de estar; havia uma chaise-longue aos pés da cama e um armário sobre o qual existia sempre uma lata de queijadas da madeira que deliciavam os netos, sobretudo os que viviam ainda em plena puberdade adolescente, filipe e rodrigo…».

o que entra traz sempre a esperança e o seu contrário, dizia. os meus votos são esses. que não desistamos de nos desiludir, se o fizermos a vida morrerá de sentido. abramos a porta então e deixemos entrar o que é novo. l