‘Para ser bailarino é preciso ter uma centelha inata’

O Rei Humberto de Itália e Almada Negreiros assistiram, em 1958, à abertura da escola onde Anna Mascolo ainda hoje dá aulas de dança. Este ano a Universidade Técnica de Lisboa atribuiu-lhe o doutoramento honoris causa e no seu aniversário a Gulbenkian dedicou-lhe uma exposição retrospectiva.

o que faz de uma bailarina, uma grande bailarina?

é preciso dedicação, trabalho, humildade, aceitação e, acima de tudo, uma grande paixão e alegria. é necessário que não seja só o cérebro a comandar o corpo mas também o coração. claro que implica sempre trabalho mas é um trabalho tão extraordinário, tão espontâneo, tão inverosímil que não há outro que se assemelhe.

quando começou a interessar-se pela dança?

quando fiz 11 anos comecei a aprender com um professor, mas tenho a impressão que já nasci a dançar! aos 13 anos encontrei um sítio [escola de dança do conservatório nacional] onde se ensinava – digamos assim – dança. fui por aí caminhando até o meu corpo começar a sentir que ali não era o local certo. saí então de portugal para a companhia marquês de cuevas, em 1953.

nessa altura, quais eram os principais erros que se cometiam em portugal?

havia pessoas que se diziam bailarinos e havia pessoas que se diziam professores e ninguém sabia absolutamente nada! os meus primeiros professores vinham dos mais variados sítios. havia até uma fulana que era da área da matemática mas como gostava muito de dança, acabou como professora de ballet no conservatório! agora já não é assim, já há escolas que efectivamente ensinam.

a partir de 1948 percorre a europa para estudar com grandes nomes da dança clássica. que diferenças encontrou lá fora?

no conservatório era proibido dizer-se que queríamos ser bailarinas profissionais. por isso fui para o estrangeiro. diziam-me: ‘tens um grande talento mas o que fizeram contigo foi totalmente errado!’. nunca esqueci essa frase…

em 1953 integra a companhia marquês de cuevas. como se candidatou?

fui ter com o marquês de cuevas, quando esteve em portugal, e disse-lhe que queria entrar para a sua companhia. respondeu-me: ‘vais fazer a tua participação numa aula e depois os professores avaliar-te-ão’. foi extraordinário. mas uns acontecimentos familiares muito tristes fizeram-me deixar a companhia num momento em que não quereria nunca tê-lo feito.

quando regressa já tem a ideia de formalizar o ensino da dança em portugal?

nessa altura, a minha mãe estava muito doente e achei que devia estar com ela. foi também a maneira de dizer ‘vou concretizar em portugal aquilo que sempre pensei fazer pela dança’. abri a escola e penso que consegui, apesar de tudo, fazer alguma coisa. a abertura da escola em 1958 foi o consubstanciar dessa vontade de ver a verdade vencer a mentira no ensino da dança. claro que não deixei de ser vista como uma inimiga feroz para muita gente… como antes não havia regras, toda a gente reagiu àquilo que eu trazia.

o que trouxe de novo?

trouxe um método que se rege pelas regras da dança e pelas regras do que é anatomicamente correcto. só se pode fazer com o corpo humano aquilo que ele sabe que está certo, aquilo que aceita, absorve e _desenvolve. um método que em vez de fazer o bailarino dançar, fá-lo trôpego e incapaz, com certeza que não presta. mas para se ser bailarino tem que haver também uma centelha inata que faz com que se trabalhe com paixão e persistência.

que momentos destacaria na sua carreira?

o primeiro foi quando me apercebi que o meu corpo estava a ser maltratado. já tinha percebido que recusava certas coisas quando estava nas aulas do conservatório mas foi através de um livro que o meu marido – na altura era apenas um grande amigo – me ofereceu que percebi o que estava errado. tinha uma rotação do fémur difícil e com esse livro aprendi a fazê-la bem. quando no conservatório me vieram perguntar o que estava a fazer, respondi simplesmente: ‘estou a fazer o que está correcto!’. durante 15 dias o professor não me dirigiu a palavra. depois de 15 dias, entrou na aula a dizer ‘hoje vamos fazer umas coisas diferentes…’. foi um momento decisivo, não só para mim, mas para esse professor que viu que estava errado. outro grande momento foi quando entrei para a companhia marquês de cuevas. só depois de lá chegar é que me apercebi da extraordinária aventura que ia começar na minha vida. essa companhia ensinou-me tudo.

já referiu que outro momento alto foi quando abriu a escola…

foi! e quando casei! a escola foi uma coisa muito pensada, amadurecida e depois lançada. as pessoas que estavam presentes no dia da inauguração [rei humberto ii de itália, marquesa olga do cadaval, almada negreiros, maestro frederico de freitas e a poetisa oliva guerra] foram pessoas que lutaram muito para que a arte fosse aquilo que é hoje.

pelo meio lutou pelo reconhecimento do estatuto do bailarino e pela reconversão profissional.

sempre me bati pelo estatuto do bailarino. todas as profissões têm as suas regras e as suas leis que se conjugam num estatuto. e o estatuto do bailarino ainda está por fazer porque há aí gente que não sabe o que é ensinar dança e no entanto ensina. já a reconversão profissional é fundamental porque é a única carreira que só tem 20 anos de vida. mas não sei se há realmente alguma evolução. acho que se não houver cuidado com a dança em portugal, daqui a nada desaparece. tem sabido de espectáculos de dança que se façam diariamente? não… é que a dança não pode ser assim! um bailarino tem que dançar!

qual é então o problema?

não há dirigentes empenhados! há um país inteiro para ser explorado! há que trabalhar com essa gente porque eles têm o direito de poder trabalhar. e o cidadão tem o direito de poder ver dança porque ela existe, é uma arte e uma profissão. isto não está a acontecer e estou muito preocupada porque se não se alimenta essa efervescência que ainda resta, daqui a nada a dança desaparece. o ballet gulbenkian ter acabado foi um golpe terrível porque aquela companhia fazia as coisas girarem. há agora alguma companhia a fazê-lo? desconheço…

temos a companhia nacional de bailado.

existe?! se calhar ando desatenta…

costuma ir a espectáculos?

costumo ir muito, o último foi o da olga roriz, a cidade.

sua aluna.

e um grande valor. dizem muitas vezes ‘o físico português não presta para a dança!’. só não presta quando não foi bem ensinado. nós também não queremos ver bailarinas com um metro e meio de pernas. até nem fica bem!

este ano foi agraciada como o doutoramento honoris causa pela universidade técnica de lisboa. sentiu-se reconhecida?

recebo sempre essas coisas com simplicidade. foi um reconhecimento, foi bom, mas não mudou a minha vida!

não tornou as suas batalhas mais fáceis?

não, porque o país é avesso a mudanças. por exemplo, em portugal nunca estive em nenhum sítio de chefia…

porquê?

porque o país não está disposto a aceitar coisas que não percebe. permita-se-me a não humildade desta resposta: foi uma grande perda porque se este meu impulso tivesse sido aproveitado, teria dado uma ajuda muito maior.

foi também por isso que criou a escola, para fazer as coisas ‘à sua maneira’?

abri-a para valorizar aquilo que os meus alunos tinham e estavam dispostos a dar. se passaram por aqui tantos bailarinos e professores é porque a escola merecia ser aberta. eles é que falam por mim.

no dia do seu aniversário a gulbenkian inaugurou uma exposição retrospectiva da sua carreira. é igualmente um reconhecimento do seu trabalho.

consideraram que o meu percurso teve alguma importância. acho que tem piada, tem interesse e tem importância. fiquei satisfeita mas, mais uma vez, também não estou jubilando. não mudou a minha vida mas acho que pode mudar a vida de algumas pessoas que estão nesta área.

e o livro de memórias que chegou a considerar publicar?

às vezes é melhor deixar as memórias ficarem sossegadas e tranquilas onde estão, porque nem todas são boas. tenho já alguns textos escritos, deixei passar uns anos e em 2013 vou relê-los, recordar coisas que se calhar já não me lembro e depois ver se realmente valerá a pena tirar o pó a essas recordações e lançá-las ao ar.

mas em outubro lançou o livro celebrar a dança em dias do meu tempo (transversal editores). do que se trata?

é um livro que fala sobre o meu percurso, com fotografias, com depoimentos. achei que era melhor serem outras pessoas a falar de mim porque é sempre maçador a pessoa falar de si.

estava também a organizar o seu espólio. como está a correr?

a biblioteca nacional está interessada nele. temos é que estabelecer as condições porque o espólio é grande e algumas coisas vão interessar e outras não.

que balanço faz então destes seus 60 anos dedicados à dança?

não faço balanços, faço coisas! se os meus alunos estão agora no sítio onde estão é porque o meu percurso e esta escola fazem sentido existir.

patricia.cintra@sol.pt