Sérgio Veiga: ‘A minha adrenalina tem de ser verdadeira’

Além de pintor e escritor, Sérgio Veiga é também o mais antigo caçador-guia moçambicano. E inspirou Mia Couto a construir a personagem principal de A Confissão da Leoa. Agora, vai deixar de caçar. Mas espera que outros continuem a fazê-lo.

o último livro de mia couto é um romance sobre uma caçada no norte de moçambique. foi você que inspirou a personagem principal?

era eu. falámos ao telefone e eu disse-lhe: ‘olha mia, houve um ataque de leão, que acabou de matar uma pessoa. vou atrás dele e espero conseguir caçá-lo’. o mia disse-me: ‘vê lá, toma cuidado’. e eu respondi: ‘telefona ao leão e diz-lhe a ele para ter cuidado, porque eu é que o vou matar’. no dia seguinte, quando telefono ao mia a dizer que já tinha conseguido abater um dos leões, ele perguntou: ‘com quem falo? é com o leão ou com o caçador?’.

por que não foram juntos?

estávamos a fazer trabalhos distintos. eu fui chamado por uma empresa americana de prospecção de petróleo, para proteger pessoas que estavam a fazer pesquisas. o governo também me pediu para caçar aqueles leões. e o administrador de palma, como era novo, estava a ser acusado de ser o mandante dos leões porque tinha acabado de chegar quando os leões começaram a atacar. então ele queria que eu matasse os leões de qualquer forma.

existe a crença de que uma pessoa pode conseguir mandar os leões matar pessoas?

o último ataque mortal que os leões fizeram foi a uma mulher que veio de uma aldeia para ter um filho. quando voltava para a aldeia com o filho recém-nascido nas mãos, o leão matou-a. e deixou o bebé. nessa altura são acusados dois miúdos de serem os mandantes do leão ou de, eles próprios, se transformarem nos leões.

porquê?

um deles era filho da falecida. e tinha tido uma discussão com a mãe. disseram logo que ele é que se tinha transformado em leão. fiquei numa situação bastante complicada. estamos no interior de áfrica, num sítio remoto. a minha pele não é da mesma cor da daqueles cidadãos, apesar de eu ser moçambicano. era difícil chegar lá e dizer: ‘esses miúdos não têm nada a ver com nada’. vi os miúdos, que tinha uns 18 anos, serem colocados dentro do carro da polícia e espancados. tive de arranjar um caminho muito estreito para conseguir libertá-los.

que caminho foi esse?

quando estou a seguir o rasto dos leões, apanho a criança ainda viva e depois encontro a mãe morta, meia devorada pelo leão. nessa noite consegui atingir um dos leões, o macho. ele tinha sido ferido mortalmente porque o tiro atingiu-lhe os intestinos – sabemos isso porque o sangue que sai é misturado com água e, às vezes, excrementos. quando é assim sabemos que aquele caso está resolvido. então, eu vou à aldeia para tentar convencê-los a libertarem os miúdos.

como?

tive de ir pelo pensamento deles. perguntei-lhes: ‘não têm medo de um dia serem vocês acusados disso? amanhã podes ser tu, porque tens uma mulher bonita e um vizinho que cobiça a tua mulher acusa-te. temos que ter a certeza que a acusação é correcta. não quero que não acreditem nas vossas crenças, porque sabem mais do que eu. só estou a tentar raciocinar com vocês. ontem dei um tiro num daqueles leões. vão à esquadra, ver aqueles miúdos. se um deles tiver uma ferida no abdómen podem matá-lo, porque eu assumo a responsabilidade. se não tiver, peço que os libertem’. então libertaram os miúdos.

e apanharam a leoa?

quando o macho é atingido mortalmente a fêmea não o larga. fica com ele. só quando ele morre e começa a cheirar mal é que o larga. o que não acontece ao contrário. quando a fêmea é atingida, mesmo que fique viva, o macho larga-a e parte para outra. é uma safadeza masculina. mas é a realidade da natureza. ouvia a leoa ao longe todas as noites. é uma sensação espectacular, estar numa aldeia no meio do nada, quando o sol começa a baixar e o escuro toma conta do horizonte, e começar a ouvir a leoa ao longe, a chamar pelo marido. ao quarto ou quinto dia cruzei-me com ela. demos-lhe um tiro na cabeça e ela morreu. mais tarde vim a saber que o macho também tinha aparecido morto e o problema ficou resolvido.

custa-lhe matar os leões?

aquela experiência foi muito dura. vi coisas horríveis. vi cabeças de mulher. situações terríveis. os animais em áfrica não são aquilo que o walt disney mostra. há uma realidade muito agressiva. houve alturas em que fechava os olhos para dormir e tinha alucinações. tinha medo de fechar os olhos. às vezes ficava a jogar cartas ou bilhar até cair de sono. a minha mente estava perturbada. tive quase vontade de ir a um curandeiro para me tratar. mas não acredito muito em poderes sobrenaturais. tenho de acreditar na minha espingarda, não posso acreditar que vou deitar abaixo o leão com o olhar.

quantas pessoas morreram vítimas dos ataques dos leões?

26.

em quatro ou cinco meses?

sim. andei dois meses e meio atrás deles. comiam uma pessoa por semana. e quando lhes era retirada a presa, tinham que matar outra para se alimentarem.

é normal morrer tanta gente em ataques de leão?

ali é. foi uma zona massacrada por guerras. talvez aqueles animais se tenham habituado a comer carne humana, havia corpos lá deixados. em todas as partes de moçambique há leões, mas ali é pior. e não existem muitas presas naturais porque os caçadores furtivos matam tudo.

nasceu em maputo, em 1953. filho de portugueses?

o meu pai já nasceu em moçambique, a minha mãe foi para moçambique com três anos.

como foi a sua infância?

espectacular.

de pé descalço?

de pé descalço. mas a minha avó punha-me sapatos nos pés. ia jogar futebol para a estrada, punha os sapatos a servir de baliza e ali ficavam. comecei a caçar muito cedo, com a fisga. depois com a pressão de ar.

o que faziam os seus pais?

a minha mãe era modista e o meu pai [cândido veiga] era maquinista de guindastes. e foi um grande jogador de futebol. depois, a certa altura, tornou-se caçador profissional. à sexta-feira agarrávamos no jipe, farolinávamos à noite, que é proibido, caçávamos uns animais, fazíamos uma churrascada. dávamos alguma carne à população, outra levávamos.

que animais caçavam?

tudo. búfalos, leões, leopardos, elefantes… o que aparecesse.

cresceu então a caçar com o seu pai.

nasci a caçar e a pescar. um homem nasce predador. o que tive que aprender foi a escrever e a ler.

viviam bem?

sim, mas não como agora, que se enfiam doces pelas goelas dos miúdos e têm os computadores e essas coisas todas. para nós era diferente. ainda hoje não consigo jogar um jogo de computador. aquilo não é real, é a fingir. tenho que ter o tubarão à minha frente, ver se me safo, se consigo subir para o barco sem levar uma trincadela. tenho que saber dar o tiro para ele não me morder. a minha adrenalina tem de ser verdadeira.

era bom aluno?

péssimo. não tinha muito tempo para estudar. a minha mãe disse que eu ia adorar, que a professora me ia ensinar coisas novas e que ia ter meninos com quem brincar. mas na primeira vez que fui à escola saí da aula para ir ver um avião de quatro ventoinhas. a professora veio atrás de mim, pensei que me ia dizer que avião era aquele. mas ela queria era agarrar-me pela orelha, dar-me dois açoites e puxar-me para dentro da aula.

foi aí que descobriu que na escola não ia aprender aquilo que queria?

penso que tomei consciência de que tinha de andar por caminhos muito mais pedregosos. sou um pouco autodidacta em tudo o que faço. os meus pais meteram-me a estudar na áfrica do sul, aos 13 ou 14 anos. aí foi diferente, a escola fluiu melhor. o ensino português era muito mais rígido que o sul-africano.

ficou lá até que idade?

até aos 18 anos. mesmo assim, estava a ser difícil. queria ir embora e ser caçador. então o meu pai chega lá e diz-me: ‘olha, estamos fartos de gastar dinheiro na escola. queres vir embora? queres seguir a vida de caçador profissional? eu vou-te levar’. vim e abracei a profissão de caçador-guia aos 18 anos. nunca me arrependi.

como viveu a independência de moçambique?

o meu pai foi preso e ficou incomunicável durante uma semana. os meus pais assustaram-se e resolveram renunciar à nacionalidade moçambicana e abandonar o país. e pediram-me para ir com eles e renunciar também. pensei: ‘não vivo de papéis, sei o que sou, o que está na minha alma. vou renunciar para satisfazer o desejo dos meus pais’. mas não queria vir-me embora. os meus pais disseram-me que me compravam a passagem de ida e volta para se quisesse voltar. mas chego a portugal e os meus pais não me tinham comprado a passagem de volta.

como foi aterrar em portugal?

eram umas férias, ia voltar. quando vi que não tinha a passagem de volta, agarrei-me às tintas e às telas, pintei uns quadros e fui para o rossio vendê-los. em dois meses e meio fiz dinheiro para comprar a passagem de volta. embarquei para moçambique e voltei para a minha terra.

mas tinha renunciado à nacionalidade moçambicana. como foi quando chegou?

tive muitas dificuldades em arranjar emprego. por causa da guerra não havia safaris. tentei trabalhar em escritórios, mas era difícil para mim. quando estou a tentar sobreviver, o samora machel diz que todos os que renunciaram à nacionalidade moçambicana têm 60 dias para abandonar o país. escrevi-lhe uma carta com a minha história. no final dizia: ‘moro na primeira avenida, no bairro do triunfo, 182. se querem que abandone o meu país, venham-me buscar, mandem-me fuzilar, metam-me num caixão, porque vivo eu não saio’. a minha carta saiu no jornal e no boletim da república veio a resposta do presidente samora machel, a dizer que eu podia ficar em moçambique, independentemente da nacionalidade. mais tarde optei pela moçambicana.

como sobreviveu?

da pintura. e comecei a pescar à linha com pescadores artesanais, depois a fazer caça submarina. vendia o peixe na estrada. foram momentos difíceis mas não me doeram. estava preparado. e existia uma luz ao fundo do túnel. eu já tinha sido privilegiado. sabia que podia chegar lá. para quem sempre esteve na miséria, é mais difícil ter esperança.

participou na guerra civil?

não, tentei fugir dela. não era militar, tentei não arriscar a vida. arriscava a vida com tubarões. nessa altura também jogava futebol, na equipa costa do sol. e o meu treinador era uma pessoa excelente, chamava-se martim de almeida. fazia-nos sopa para comer depois do treino. essa sopa safou-me de passar muitas noites com fome.

em que posição jogava?

guarda-redes.

deixava entrar muitos golos?

deixava.

portanto, a vida era marcada pela pintura, pelo futebol e pela caça submarina. vendia os quadros na rua ou expunha em galerias?

sempre tive muita facilidade em vender os meus quadros. fiz muito poucas exposições. fiz duas individuais, uma aos 16 anos, outra em 2001. e vendi praticamente os quadros todos. também não havia como não vender: pus os quadros à melhor oferta. não existe um preço para me separar de uma coisa que nasceu de mim. com a literatura é mais fácil. fica-se com o livro. um quadro não. fica-se triste se não tiver aceitação e se não se vender. e fica-se quase tão triste se se vender.

tem um livro publicado, o canto da galinha do mato, que há meses foi editado em portugal. entretanto já escreveu mais alguma coisa?

estou a escrever um livro em que conto a minha experiência. comecei a fazer caça submarina antes da independência. e na caça comecei no período de ouro dos safaris em moçambique. sou um elo de ligação entre a geração antiga e a geração moderna.

é o único caçador da sua geração?

sou o caçador-guia mais antigo de moçambique. fui o último a ser licenciado no tempo colonial. tenho histórias do antes e do depois. houve um momento de mudança. e eu estive lá.

voltou a caçar no final dos anos 90. tinha saudades do mato?

muitas. é como uma droga: quando lhe tocas, estás dentro do vício outra vez. e assim foi quando recomecei a caçar. a paixão é muito grande.

caça com turistas?

sim. há uma empresa de safaris que tem uma área não cercada, e que tem uma quota de abate, geralmente determinada por uma ong que protege animais em risco de extinção. os animais protegidos são o elefante, o leopardo, o leão e o crocodilo. o nosso trabalho é preservar a área, criar uma boa relação com a população e trazer clientes de várias partes do mundo. a carne dos troféus reverte a favor das populações. e protegemos a área contra furtivos.

quais são os principais clientes?

portugueses, espanhóis, franceses. as empresas de língua portuguesa dominam mais a área dos latinos. e as empresas entregues a sul-africanos têm clientes maioritariamente americanos.

o que fazem?

levamo-los para o mato, para um acampamento montado com todas as condições, porque eles pagam preços elevados, e levamo-los a escolher um troféu: um bom macho, que já tenha sido rejeitado da manada e que seja o mais velho possível. às vezes enganamo-nos e matamos uma fêmea, o que é uma aberração, um desgosto e um fracasso.

quais os animais mais procurados?

búfalo, leão, leopardo, elefante. e os antílopes.

quando sai com clientes não caça.

não. dou um tiro ou dois, só para proteger em caso de uma carga.

não sente necessidade de caçar?

chega-me estar no mato. nasci para ser caçador-guia. não quero tirar a vida a um animal para lhe tirar a pele. o meu objectivo é proporcionar um momento de felicidade a um homem que venha a áfrica absorver um pouco da selva. mesmo quando sou chamado para abater um animal que tenha atacado um ser humano, se puder evitar matá-lo, evito.

é frequente chamarem-no nessas circunstâncias?

é. uma vez fui chamado para abater um crocodilo que comeu um amigo meu. ele ia com um colega, de inhaca até à ponta de ouro, e passaram pela reserva dos elefantes, que tem lagos lindíssimos. foram tomar um banho de água doce para se refrescarem. enquanto um estava a descalçar as botas, o outro viu o crocodilo dar uma ou duas voltas e o amigo dele – e meu – desaparecer. e eu fui chamado para abater esse crocodilo. e não abati.

não conseguiu?

não. nem fui.

porquê?

porque na reserva quem tem prioridade é o animal. aquilo é a casa dele. se o animal mata fora da reserva, posso tentar caçá-lo. mas dentro da reserva o intruso é o humano. por muito que me doa ter sido o meu amigo. além disso, como é que vou saber, em centenas de crocodilos, qual é que comeu o meu amigo e se vai transformar, provavelmente, em comedor de homens? nos leões é diferente. quando um leão ataca uma pessoa, e eu encontro um leão nesse dia, ou nessa noite, a um quilómetro e meio, foi esse leão que fez aquele ataque. não há tantos assim. mas num lago há imensos crocodilos.

já fez caçadas com clientes famosos?

já, mas eles não deixam divulgar. se não acontece como o rei de espanha. as pessoas perdem a noção da realidade.

que realidade é essa?

o homem é um predador. todo o animal que tem os olhos à frente é um predador. as presas têm os olhos de lado. além disso, caçar para troféu é o método de preservação que temos. porque não são os safaris fotográficos que vão trazer dinheiro para proteger essas áreas. não é pelo simples facto de pormos quatro pontos num mapa e escrevermos ‘reserva’ que as pessoas não invadem a zona para caçar, principalmente a população. quando me dizem ‘sou incapaz de matar um animal’, tento explicar que essa é uma participação negativa na conservação. quem mata um animal deixa dinheiro para preservar dezenas deles. o rei de espanha deixou dinheiro para preservar vários animais. e só caçou um.

qual foi a caçada mais memorável em que já participou?

não posso dizer que seja exactamente caçada, mas uma das aventuras mais memoráveis é esta dos leões [de palma]. mexeu muito comigo. foram dois meses intensos a ver coisas terríveis.

escritor, pintor, caçador, pescador… como se define?

como um homem que gosta de ser feliz.

é o caçador-guia mais antigo de moçambique. a profissão tem um prazo de validade, como o futebol?

incrivelmente, não. devíamos fazer testes médicos e testes de tiro.

tenciona continuar a caçar enquanto se sentir bem?

penso que parei agora. sou capaz de fazer um safari ou outro, porque tenho que acompanhar alguns clientes por quem tenho amizade profunda, mas estou a parar de trabalhar.

porquê?

o meu pai faleceu este ano. ele era a minha sombra, queria ver-me ir para o mato, queria sentir os pés dele a caminharem nos meus pés. quando voltava tinha histórias para lhe contar, ele exigia isso de mim. agora não tenho a quem contar. além disso, morreram muitos animais debaixo dos meus olhos. e vi o meu pai morrer-me nos braços, vi o seu olhar brilhante a ficar baço. não tenho vontade de ver isso a acontecer nos animais. caçar é um direito, mas não me apetece fazê-lo mais.l

rita.s.freire@sol.pt