Padrinho Lopes-Graça [com vídeo

Sílvia Camilo tinha há mais de 40 anos uma partitura que lhe fora oferecida por Fernando Lopes-Graça e nunca tinha ouvido essa música. Afilhada do compositor, maestro do Coro da Academia dos Amadores de Música onde os seus pais eram coralistas, à data do seu terceiro aniversário recebeu do padrinho uma peça para piano intitulada…

há pouco mais de dois anos, decidiu que era tempo de as notas na pauta serem convertidas, finalmente, em som. «pedi à mãe de um amigo, o daniel sasportes, que tinha tido aulas com o graça. só que ela estava há 40 anos parada e não conseguiu tocar. num jantar de natal, o daniel devolveu-me a partitura. decidimos então que tínhamos que encontrar alguém para a tocar».

desta curiosidade nasceu um projecto ambicioso que acaba de se materializar no cd fernando lopes-graça. músicas festivas onde estão as primeiras 14 de um conjunto de 23 peças para piano escritas pelo autor como oferenda para pessoas muito próximas (o segundo cd sai no fim do inverno) e agora tocadas por antónio rosado.

antónio rosado toca para os leitores do sol ‘para os cinco anos da teresa margarida’

no jantar em que sílvia disse em voz alta o desejo de ouvir a sua música, levantou-se ainda a questão: a peça que lhe tinha sido dedicada trazia o número 2. haveria mais? quantas seriam? sílvia aliciou para essa pesquisa daniel sasportes e a prima, ondina camilo.

lopes-graça multimédia

uma investigação no museu da música portuguesa, em cascais, ao qual o compositor doou o seu espólio e direitos autorais, viria a revelar que lopes-graça assinou 23 músicas festivas que, como o próprio redigiu, são «umas pequenas, outras maiorzinhas. é uma colecção que eu tenho: uma comemoração disto, uma comemoração daquilo, uns anos deste, um casamento daquele…».

portanto, era preciso ouvir todas essas músicas e encontrar todos esses dedicatários. dois deles são personalidades públicas que foram seus amigos: álvaro cunhal (lopes graça foi simpatizante e, desde 1945, militante do partido comunista, tendo sido preso diversas vezes pela pide) e o primeiro-ministro do prec, vasco gonçalves.

da ideia singela de ouvir uma peça guardada há anos como uma relíquia partiu-se para um projecto que ultrapassou a ‘carolice’ e se tornou verdadeiramente profissional. com material precioso a avolumar-se, o grupo de três decidiu associar profissionais nas várias áreas para criar «um conceito redondo».

como não «percebiam nada de música» convidaram o pianista nuno barroso, que também nos seus 19 anos recebeu uma ‘lembrança’ do compositor (é a peça n.º 10 do cd), para director musical do projecto. e foi convidado o pianista antónio rosado para interpretar as peças num recital (que aconteceu a 16 de dezembro no ccb) e gravar os cd. depois foi criado um site, e haverá um dvd com a gravação desse recital e entrevistas aos dedicatários conduzidas pela própria sílvia camilo.

uma das mais importantes realizações deste projecto é que as pérolas afectuosamente oferecidas, dos anos 60 até 1994, por um dos compositores portugueses mais importantes do século xx, estão agora reunidas num colar precioso que se pode adquirir em cd (na fnac do chiado, no ccb, no el corte inglés, na loja da ava, nas livrarias barata e na louie louie).

mas, mais importante ainda, como destaca antónio rosado, é que as partituras (editadas pela ava) estão agora acessíveis para todos, «e podem ser estudadas e tocadas por quem quiser. é um trabalho fundamental para que as músicas possam sobreviver». o facto de se querer editar foi «uma das particularidades deste projecto que me agradou muito. penso que é até mais relevante que a gravação do cd». o próprio rosado fez a revisão dos manuscritos.

a existência de inéditos de lopes-graça, um compositor maldito no antigo regime, cujas músicas estavam proibidas de ser tocadas publicamente, percebe-se mal nos dias de hoje. «infelizmente, obras inéditas não é assim tão raro em portugal. à luz do que se faz noutros países, roça o ridículo, mas conhecendo a edição, ou a inexistência quase, não acho estranho!», lamenta rosado.

terreno não pisado

mais do que não impressas, muitas destas músicas nunca tinham sido tocadas publicamente. das 23, quatro o grupo promotor encontrou num cd comemorativo do centenário do autor numa edição da antena 2. há 11 das quais não há qualquer registo.

antónio rosado, que quando se dedicou a fundo ao estudo das peças tinha acabado de tocar a integral das sonatas de beethoven, viu-se nos antípodas: «depois de ter estado a tocar peças que já foram tocadas por milhares de pianistas, vi-me num desafio completamente oposto e invulgar: estava em terreno nunca pisado. a ter a primeira visão, sem nenhuma referência». mas o facto de serem obras inéditas, num registo «afectivo e prova de uma grande generosidade, num autor que é conhecido por ser mais austero, não faz com que sejam meras ‘gracinhas’, que se levam quando se é convidado para uma festa».

foram escritas, diz rosado – pianista que já tinha gravado a integral das sonatas para piano de lopes-graça e as suas suites – «acompanhando a sua evolução estética, muito inspirada em bartók» e com o mesmo rigor. mas, por outro lado, conta rosado, estas peças – que não entram no ouvido de um público não erudito com a mesma facilidade de uma 9.ª sinfonia de beethoven – são, numa segunda audição, verdadeiramente cativantes e poéticas. «na minha música consigo ver o graça a olhar para mim a correr num corredor de nove metros que tínhamos lá em casa», diz sílvia camilo, que se confessa «exultante com o resultado de todo este projecto». são pérolas que revelam uma nova dimensão do compositor herói da revolução dos cravos, autor do hino ‘acordai!’, que agora voltou a ser vox populi.

telma.miguel@sol.pt