«há passageiros que entram no avião a perguntar quanto está ou quanto ficou o jogo do benfica». o relato é de carolina ceia, 25 anos, assistente de bordo na tap há dois. na sua opinião, episódios destes espelham a relação que os portugueses têm com a companhia. se eusébio é um símbolo nacional – em 2004, um a319 foi baptizado com o seu nome para o homenagear – a tap também joga neste campeonato.
«tornou-se uma companhia de bandeira, que representava portugal em todo o lado. isso reflectia-se até na alimentação. chegámos a servir frango na púcara», relata o director de pessoal de cabine, georges jeunehomme. com 42 anos de casa, acredita que a paixão do país pela empresa se explica «pelo seu espírito português». e não esquece a reacção no regresso de uma viagem ao japão, com mário soares, quando anunciou que havia pastéis de nata a bordo. «ninguém estava à espera. foi uma festa naquele avião».
criados oficialmente a 14 de março de 1945 por humberto delgado, à data director do secretariado da aeronáutica civil, a pedido de salazar, os então transportes aéreos portugueses – os taps, antecessores da actual tap portugal – desde logo levantaram voo como uma extensão do território. serviam de ligação às colónias. em alternativa ao barco, era nos seus aviões que os emigrantes e os luso-descendentes na venezuela, brasil e áfrica vinham ver a família. voavam com os empresários portugueses que davam os primeiros passos para internacionalizar negócios. e foi a tap que, ao iniciar as rotas para a madeira, em 1964, e açores, em 71, ajudou a furar a insularidade. o hub de lisboa conecta a europa, a américa latina e áfrica.
«entrar num avião da tap é como entrar num bocadinho de portugal. há uma sensação de regresso a casa porque as pessoas falam a nossa língua, há jornais e revistas em português», confidencia o piloto pedro alceu, desde abril na companhia e também ex-emigrante.
voando hoje para 76 destinos, a tap deu novos mundos aos portugueses. mas também leva o país na bagagem. talvez seja por isso que, na comunicação social, o tema tap cativa o grande público, como se viu no recente processo de privatização, entretanto suspenso.
marca valiosa e fundamental para o turismo, é montra da cultura e dos produtos nacionais. na década de 60, já a loiça utilizada, da vista alegre, era decorada com imagens de danças típicas, do vira do minho aos pauliteiros de miranda. e no menu servido a bordo não faltam queijos, pão e vinhos lusos. no ano passado, seis dos melhores chefs nacionais foram convidados a criar pratos tradicionais, para servir na classe executiva. bacalhau, vitela e polvo foram os primeiros a embarcar.
em 2005, a nova imagem então anunciada trouxe uma dose reforçada de portugalidade nas fardas, no logótipo e até no nome da companhia, que passou a tap portugal. fernando pessoa, a pintora vieira da silva e o papa joão xxi ‘voam’ sempre na companhia, que tem por hábito baptizar os aviões com nomes de grandes personalidades nacionais.
em 2011, a tap gerou um recorde de dois mil milhões de euros para o país, mais 15,7% do que em 2010. assume-se como a maior exportadora portuguesa. e até aqui chegar, protagonizou uma viagem com várias escalas e muitas mudanças. sobretudo na forma de viajar, tanto para os passageiros como para as tripulações.
da elite à democratização
certo dia, chegou aos ouvidos de joana oliveira que havia alguém apreensivo a bordo. depois do seu discurso, um passageiro perguntava a um comissário se estavam nas mãos de uma mulher-piloto. o tripulante tentou tranquilizá-lo. mas a dúvida persistiu: «não é com o voo que estou preocupado. é com a forma como vai estacionar o avião», confessou.
a comandante não levou a mal. «uma mulher aos comandos tem sempre histórias engraçadas. as pessoas acham piada», conta a profissional, na tap desde 2002. corria 1989 e a companhia acabara de contratar a primeira mulher-piloto, teresa carvalho, que só viria a ter companhia feminina no cockpit em 1996. ainda assim se havia funções mais masculinas, também existia o contrário. inicialmente, era frequente chamar enfermeiras para hospedeiras, precavendo emergências. as viagens chegavam a demorar dias, como acontecia com a linha aérea imperial. quando, em 1946, foi admitido o primeiro comissário de bordo – e único até 1953 –, lopes da silva não escapou à paródia. entre mulheres, era conhecido por miss lopes.
«as minhas chefes eram quase todas senhoras», recorda georges jeunehomme, que começou na tap no início de 1970, como comissário de bordo. mas, reflexo da época, «muito antes do 25 de abril, os homens eram promovidos antes das mulheres», reconhece.
nesse tempo, e até 1970, as assistentes de bordo tinham de ser solteiras. não era de bom tom uma senhora casada passar muito tempo fora. mesmo a trabalhar. «entrávamos e realizávamos o sonho de miúdas, quando víamos as hospedeiras muito glamourosas nos aeroportos. estávamos três anos e juntávamos dinheiro para o enxoval porque se ganhava acima da média», lembra teresa monteiro, que começou na tap em 1966. aí, como agora, o glamour era imagem de marca da aviação. os tripulantes corriam mundo, quando o transporte aéreo ainda era pouco acessível. apresentavam-se com elegantes uniformes. passavam por cursos de línguas e cultura geral. «fazíamos estadias grandes na áfrica do sul. chegava a estar oito dias em nova iorque. imagine o que era para uma miúda de 20 anos estar na broadway. nessa altura, as minhas amigas iam a badajoz, se iam», comenta. depois, as estadias encurtaram. «tudo mudou nesse aspecto, no número de aviões e de tripulantes».
como assistente de bordo de longo curso, em representação da tap, teresa participou num concurso internacional que anualmente elegia a rainha do ar. durante uma semana, o júri analisava a postura, conhecimento e comportamento das candidatas. trouxe o título de vice-rainha.
também o comandante joão augusto graça, 92 anos, e um dos pioneiros a pilotar na tap, tem lembranças gratas da profissião. começou em 1946. inicialmente ganhava ao quilómetro e depois à hora. recebeu seis contos como primeiro ordenado. era navegador na rota para madrid, a primeira da tap. «todos nós gostávamos daquela escala, que era mais um passeio turístico de luxo, tipo vip, do que uma linha aérea», recorda. destas viagens, trazia estadias confortáveis «no magnífico hotel na gran via, junto à cibeles, que era o mais luxuoso de madrid».
no final da década de 40, vieram as ligações a paris, londres, sevilha. nessa época, ir até à cidade espanhola e regressar custava 1.248 escudos e 40 cêntimos. e o preço do bilhete incluía as deslocações para o aeroporto e «merendas ou refrescos gratuitos». por cada quilo a mais na bagagem, um extra de 7,20 escudos.
em meados da década de 60, são lançados os voos para o brasil. primeiro com a linha da amizade, que prometia bilhetes a metade do preço para portugueses e brasileiros, depois para outras regiões, como o rio de janeiro. neste voo, com duas escalas, no sal (cabo verde) e recife, que chegava à cidade maravilhosa mais de 18 horas depois de partir de lisboa, a tripulação não dispensava alguns mimos.
«uma vez atingida a altitude de voo, pedia para assarem no forno do avião as linguiças que tinha levado, transformando com este pitéu a crónica refeição de bordo num saboroso almoço», conta o comandante graça, nas suas memórias. era então que as iguarias portuguesas tomavam conta dos ares. «alguns emigrantes embarcavam com o seu cesto de verga quadrado, vermelho, com duas asas, onde levavam o seu frango assado, por desconhecerem que se serviam refeições a bordo», continua o piloto, reformado desde 1980. cumprido o voo, três dias de descanso em copacabana.
hoje os procedimentos são diferentes. «podemos começar bastante cedo, e estar no aeroporto às 6 da manhã, para ir a hamburgo, frankfurt ou londres e regressar. nesses dias, estou em casa pouco depois da hora de almoço. ou pode ser um voo para paris e fico lá a dormir», descreve pedro alceu, de 26 anos. piloto de médio curso, por norma não dorme mais de duas noites no mesmo destino. nunca há rotina. muitas vezes, cruza-se com colegas de outras companhias. «em helsínquia ficamos no mesmo hotel que as tripulações da british airways. em accra, no gana, acontece o mesmo».
para o passageiro, os hábitos também se modificaram. «antigamente as pessoas vestiam-se para viajar. havia um ritual, sobretudo na primeira classe. não se ia para o avião de qualquer maneira. havia muito menos gente a voar. depois democratizou-se», atira teresa monteiro, que deixou a empresa há 15 anos.
hoje o à-vontade é maior. «antes, o público não estava habituado a voar e via-nos com distância. depois, passou a ver-nos como companheiros de viagem», concorda georges jeunehomme. e recorda até três episódios que se passaram com personalidades célebres. marcelo caetano reagiu bem quando o actual director de pessoal de bordo lhe disse que, por estar escuro no avião, tinham confundido o seu colete com um pano, usando-o para limpar os tabuleiros. antónio champalimaud, um dos homens mais ricos do país, gostava de dar conselhos sobre investimentos. e amália, que tinha pavor de voar, pedia que alguém lhe fizesse companhia durante o voo. bebericava champanhe para acalmar.
«havia passageiros que nos ofereciam sapatos ou queriam que fôssemos aos restaurantes deles», diz jeunehomme. «convidavam-nos para ir dormir a casa deles e íamos com frequência», recorda jorge claudino, outro ex-comissário, agora chefe de cabine. com 65 anos, 40 de serviço, aponta a ocasião em que, depois de passar uma noite inteira a conversar com um passageiro a caminho de moçambique, acabou por ser desafiado a ir conhecer a sua quinta. teve direito a passeio de jipe, exibição de danças africanas, jantar e pernoita.
em áfrica, a proximidade entre tripulação e viajantes estreitou-se ainda mais durante a ponte aérea, a seguir à revolução dos cravos, quando muitos portugueses quiseram deixar o ultramar e regressar a lisboa. «cheguei a fazer voos para nova lisboa [huambo, angola] em que o avião tinha de fazer uma descida quase a pique para o aeroporto porque havia trocas de tiros. chegávamos a embarcar passageiros completamente às escuras. vinham de longe, aflitos», descreve.
com capacidade para 385 pessoas, 16 no segundo andar, o boeing 747 até trazia gente na casa de banho, confidencia teresa monteiro._era «uma época muito dura» para quem vinha mas também para as tripulações que iam e vinham sem descanso.
«numa noite, no meu voo para luanda, quando estava sobre a nigéria, havia mais seis aviões nossos voando nessa região de áfrica, uns saídos de lisboa, outros voltando», relembra o comandante graça. em três meses, a tap trouxe mais de 150 mil pessoas de luanda, contabiliza.
a proibição de fumar nos aviões – em meados de 90 a tap introduz os voos azuis, livres de fumo – e os cuidados com a segurança, apertados depois do 11 de setembro de 2001, foram outras das grandes alterações vividas na aviação.
neste mercado, sopraram ventos de turbulência com a chegada das companhias low cost, as flutuações do preço do petróleo e as crises económicas. mas também de evolução, com a inovação tecnológica, a modernização dos aviões ou a internet.
tal como a bordo dos seus aviões houve bons e maus momentos, também o percurso da maior companhia aérea nacional passou por altos e baixos. para a história ficam o transporte de papas, a celebração em pleno ar do nobel para josé saramago e pelo menos quatro nascimentos. o primeiro, de uma menina, aconteceu em fevereiro de 1969, num voo de luanda para lisboa. e o último foi registado em 1986, a caminho de nova iorque. mas ninguém esquece o único acidente, na aterragem de um boeing no funchal, em 1977. balanço: 131 vítimas mortais.
três aviões parados
constituída há 67 anos (1945) como empresa pública, em 1953 a tap passaria a sociedade anónima, com uma parcela do capital a manter-se na esfera do estado. e atravessaria dificuldades. pelas sucessivas avarias, havia quem dissesse que a respectiva sigla significava três aviões parados ou take another plane (apanhe outro avião). na década de 60, sob gestão do engenheiro alfredo vaz pinto, vive uma fase de ouro. alarga rotas para o brasil, hoje um dos seus principais mercados. a compra de novos aparelhos, os caravelle, que vêm substituir os aviões a hélice, faz da tap a primeira companhia da europa a operar apenas aviões a jacto. antes de ser de novo nacionalizada – em abril de 1975 – voa para 40 destinos em quatro continentes. transporta mais de 1,5 milhões de passageiros por ano. tem 32 aeronaves. os 593 funcionários inscritos em 1954, no primeiro registo da empresa – que não teria mais de 20 quando arrancou –, aumentaram para mais de nove mil, em 1974. hoje, as várias subsidiárias do grupo empregam quase 12.400 pessoas, das quais 6.900 só na companhia aérea.
no pós-25 de abril, a tap_convive com a descolonização e com conflitos internos, agravados por sucessivos governos e administrações. em meados da década de 90, quando na sua frota passam a dominar os airbus, que ainda se mantêm, a empresa inicia um plano estratégico e de saneamento económico-financeiro (pesef). em 2000, esgotado o efeito do pesef, e com uma dívida equivalente a 79% dos proveitos, a solução estava na privatização e na entrega de 34% da tap à swissair, com quem já havia um acordo de aliança estratégica. contudo, o negócio nunca viria a concretizar-se. o grupo sair, dono da transportadora suíça – que já tinha sofrido danos devido a um acidente no canadá, que matou 229 pessoas –, descolou para uma dispendiosa política expansionista que acabou por fracassar. a crise na aviação após o 11 de setembro fez o resto. em outubro de 2001, com os aviões parados, sem dinheiro para combustível e taxas e com elevado endividamento, a swissair despenha-se na falência.
perdido o fôlego prometido pelos suíços, a tap vê-se a braços com a escassez de capital, um cenário com que convive há anos. apesar de a transportadora ser uma empresa pública, está impedida pelas leis comunitárias de ter ajudas financeiras do estado, o que tem travado a expansão.
ainda assim, a companhia liderada há 12 anos por fernando pinto tem comprado e renovado aviões, alargou a sua rede e adquiriu e vendeu empresas. entre elas, a pga, a groundforce e a manutenção & engenharia brasil (ex-vem), em 2006, que tem sido um dos negócios mais criticados da sua gestão, por gerar volumosas perdas. ao mesmo tempo, tem vindo a reduzir o endividamento, que representa hoje 45% da facturação. em 2003, pela primeira vez, a tap tinha lucros.
contudo, o gestor de 63 anos e dupla nacionalidade (brasileira e portuguesa) licenciado em engenharia mecânica, que chefiava a extinta varig antes de entrar na tap – e que gosta de pilotar planadores e ultraleves – também atravessou tempestades. de um lado, as greves e a contestação das várias classes profissionais, contra, por exemplo, cortes salariais ou revisões do acordo de empresa. de outro, as críticas da opinião pública quanto às regalias dos pilotos ou sobre os ordenados da administração da tap, uns dos mais altos entre as empresas públicas.
o mandato do fernando pinto terminou há um ano, mas o gestor disse que se manteria na tap até acabar o processo de privatização, que entretanto foi suspenso. a sua continuidade tem sido discutida com o governo.
para este ano, a tap prevê um resultado próximo do de 2011, quando o negócio aéreo lucrou 3,1 milhões de euros. no ano passado, transportou 9,75 milhões de pessoas. este ano, na véspera de natal, superou-se, e pela primeira vez chegou aos dez milhões.
para já, com a privatização fora do radar, a empresa tem um plano de negócios a cinco anos, que contempla crescimento, com recurso a mais um ou dois aviões por ano. por exemplo, está previsto que a frota venha a incluir novos a350.
para fernando pinto, a venda da companhia – um processo do qual se fala pelo menos há dez anos – era uma oportunidade importante para crescer. mas não uma necessidade absoluta para a sobrevivência, até porque a tap viveu nos últimos 12 anos por conta própria, financiando-se na banca.
com a recusa do governo português em vender a empresa a germán efromovich, inicia-se uma nova ‘viagem’, cujo destino ainda está em aberto.
ana.serafim@sol.pt
