«mas quem é john hawkes?!». a pergunta foi proferida por um jornalista em plena discussão acerca das nomeações para os óscares de 2010. hawkes, o tal ilustre desconhecido, acabou mesmo incluído no lote dos cinco candidatos, por despojos de inverno.
john hawkes é o nome artístico de john marvin perkins. nasceu a 11 de setembro de 1959 no estado do minnesota, que acabaria por trocar pelo texas. aderiu ao movimento musical de austin, fazendo parte de bandas como meat joy e king straggler. numa entrevista concedida à revista fade revelou que assumiu diferentes personagens quando viajou à boleia pelas estradas americanas. isso, aliado à admiração pelo actor robert duvall, tê-lo-á influenciado a abraçar uma carreira na ficção.
eterno underdog, mas com uma carreira já longa, iniciada em meados dos anos 80, deixaria uma marca forte no excêntrico eu, tu e todos os que conhecemos (2005), da performer miranda july. participou na série deadwood, acabando por ganhar notoriedade em despojos de inverno e mais recentemente no surpreendente martha marcy may e marlene. este ano o seu nome arrisca-se a entrar definitivamente na memória dos cinéfilos, pela participação em seis sessões, mas também em lincoln, o muito aguardado filme de spielberg que se estreia no final do mês.
seis sessões contorna os tiques do género e ganha pela forma como hawkes supera a sua condição e nos delicia com diálogos da autoria do próprio o’brien, uma vítima da poliomielite. nascido em 1949, aos seis anos a doença deixou-o paralisado do pescoço para baixo. em 1978 inscreveu-se no curso de jornalismo em berkeley. fez o curso entre a universidade e o pulmão de ferro, mas a experiência fê-lo querer ir mais longe. receoso de que a derrocada estivesse próxima, aos 38 anos tomou a decisão de tentar perder a virgindade.
católico praticante, antes de passar ‘à acção’ pediu um ‘parecer’ a um padre progressista, no filme interpretado com brio por william h. macy. recebeu carta branca.
e assim começa a odisseia de o’brien com uma terapeuta do sexo. o papel valeu a helen hunt uma nomeação para o óscar de melhor actriz secundária.
educado, john hawkes cumprimenta-nos à chegada e desculpa-se antecipadamente se falar muito baixo. tentará esforçar-se por falar mais alto, mas sempre num tom sereno e articulado.
esta deve ter sido a experiência mais estática na sua carreira, não?
sim, é verdade. foi interessante pensar que poderia protagonizar um filme tendo apenas de mexer um pouco ao cabeça. é incrível e ao mesmo tempo intimidatório perceber como, por vezes, uma boa representação não necessita de contar com o corpo todo. mas confiei no guião e apesar de a personagem não se mover, tentei que o seu desejo fosse captado. pensei que se era interessante de ler também poderia ser interessante de ver no filme.
como foi que este projecto chegou até si? e, já agora, até que ponto queria mesmo participar?
depois de despojos de inverno propuseram-me alguns guiões, mas este foi aquele que achei mais interessante. era também o que tinha o orçamento mais reduzido. mas não tenho medo disso, até porque nos permite mais liberdade. na altura, não fazia sequer ideia de que a helen hunt e o william h. macy acabariam por estar também envolvidos e trabalhariam quase de graça. quando as pessoas que admiro têm a mesma ideia que eu, faz-me pensar que sou bom a avaliar material.
já conhecia o realizador e argumentista, ben lewin?
não. quando me encontrei com ele, não sabia que também era um sobrevivente da poliomielite. mas o que encontrei não foi uma pessoa deficiente, foi um homem muito divertido que por acaso anda de muletas.
conhecia a história do mark o’brian?
não vi o documentário da jessica yu que ganhou o óscar [breathing lessons, 1996], só me lembro de ler um artigo sobre ela. mas isso já foi há mais de 15 anos.
que tipo de desafios encontrou nesta personagem?
o facto de estar imóvel e ser deficiente não foi o mais complicado. o próprio realizador disse-me que tinha passado vários anos à procura de pessoas com deficiência para fazer o papel. mas achou que eu podia fazê-lo, o que me deixou muito contente. e que não pretendia o politicamente correcto, pois considera-o uma forma de censura. queria poder contratar quem lhe apetecesse.
viu alguns dos filmes acerca de pessoas com deficiência, como mar adentro?
não vi o mar adentro [de alejandro aménabar, com javier bardem], não vi o o escafandro e a borboleta [de julian schnabel, com mathieu amalric], não vi o meu pé esquerdo [de jim sheridan, com daniel day-lewis]. agora vou poder vê-los a todos! poderia até ter roubado algumas ideias destes actores fantásticos. mas só vejo os filmes mais esquisitos, e um dos que mais me motivaram foi uma curta do todd haynes, superstar, em que as personagens são interpretadas por bonecas barbie.
não acha que poderia ter sido útil para se inspirar?
não gosto de trabalhar com referências de filmes. por exemplo, se estou a ler um guião que diz algo como «do tipo dennis hopper», é como se levasse um murro no estômago, pois obriga-nos a associar a personagem àquela referência o tempo todo. acho que é preguiçoso por parte de um realizador dizer: «lembra-se daquela cena em os amigos de alex?». isso não faz sentido. quando mais pura a aproximação for, quanto menos adulterada, melhor.
sentiu uma pressão maior por representar uma pessoa real?
sim, muito maior. eu trabalho a fundo, mas não quero sentir a ideia de que tenho de agradar a alguém.
o filme não segue as limitações físicas da pessoa, mas o despertar sexual dele. sente que conseguiu entrar na mente de mark o’brien?
acho que sim. é um filme que vai muito para além da limitação física. tal como uma boa história, e acho que esta é uma boa história, consegue transcender o seu tema. e quanto mais específico se é, mais universal se torna a história. já recebi elogios de pessoas que me disseram ter-se relacionado mais com aquela pessoa deitada do que com qualquer outra personagem há muito tempo. talvez porque a maioria já tivemos a primeira experiência sexual e relacionamo-nos com as circunstâncias que a rodearam, a alegria, etc. quando resolvi o lado físico do mark e deixei de pensar que era uma pessoa horizontal, encarei-o como uma pessoa absolutamente normal. aí tudo se tornou muito mais claro.
que tipo de detalhes considerou mais importante abordar e que referências tinha ao seu dispor?
tinha, desde logo, o documentário e os registos de voz. isso permitiu-me captar a voz e a aparência do mark. e, na sua autobiografia, ele falava de cada parte específica do seu corpo. era muito particular sobre as mãos e os pés, os braços e as pernas. eu gosto deste tipo de pormenores.
quais foram os maiores obstáculos que se lhe colocaram nesse processo?
por exemplo, aprender a escrever à máquina com um lápis na boca. tentar virar páginas de um livro, fazer telefonemas. por outro lado, o guião menciona que a coluna vertebral dele está toda curvada. como não queria ter um duplo, nem efeitos digitais, conseguimos criar uma almofada de espuma dura com a forma de uma bola de futebol que eu colocava nas minhas costas. era muito incómodo, devo dizer, mas salientava a curvatura da coluna dele.
há pouco falou da primeira experiência sexual. houve algum embaraço no seu primeiro encontro com helen hunt, que no filme faz o papel da sua terapeuta sexual?
acho que sim. até porque eu não a conhecia bem. mas isso foi bom. quando percebi que essas cenas mais embaraçosas seriam filmadas primeiro, fez sentido que não houvesse qualquer tipo de conforto. o cinema por vezes capta esses momentos que são verdadeiros, espontâneos e desconfortáveis.
além da terapia de sexo, tem também a terapia do padre, william h. macy. no fundo, este é um filme sobre sexo, mas também sobre religião…
bom, não sei bem o que a igreja católica pensará deste filme. provavelmente abençoarão o nosso esforço. mas, veja bem, berkeley naquela altura, e estamos no final dos anos 80, era um lugar muito progressista. o conselho do padre começa por ser pessoal, quando lhe diz, não oficialmente, mas como amigo, que pode seguir e ter sexo. «acho que desta vez jesus lhe daria carta branca para avançar»… é uma boa frase, mas é um filme. não vamos dizer às pessoas como viver as suas vidas. em todo o caso é bom podermos pensar que existe «um deus com sentido de humor», como ele diz. é outra linha preciosa.
houve quem falasse do seu nome a propósito das nomeações para os óscares. quando estava a fazer o filme sentiu que poderia gerar este tipo de aceitação?
foi um filme de baixo orçamento, difícil de financiar. de maneira que nem sequer tinha a certeza de que o filme seria acabado. é o que acontece em muitos casos. só a partir do momento em que a helen hunt e o william h. macy chegaram é que ficámos a saber que seria possível terminar o filme. ainda assim não sabíamos se seria comprado por alguma distribuidora.
é fácil trabalhar com esse nível de incerteza?
normalmente, na minha vida procuro nunca ter expectativas. nenhumas. essa tem sido a chave. se vier a ser nomeado [o que não se verificou] ficarei felicíssimo. se não acontecer, também não estava à espera de nada. é claro que agora é um pouco diferente. é altura de prémios, fala-se de tudo. e isso beneficia o nosso filme, pois não dispomos de um orçamento muito grande para publicidade. falar com a imprensa acaba por ser a nossa campanha. o que puder trazer mais pessoas para ver o filme, melhor.
mas acredita nos rumores que o dão como candidato?
por vezes fazem-se previsões que saem furadas. no caso de despojos de inverno, foi publicado um artigo de opinião sobre as possíveis nomeações que dizia no final: «mas quem é o john hawkes?» [risos].
foi estranho para si contracenar com a helen hunt quando ela estava sem roupa?
claro que é um momento especial no filme, em que a personagem fica ao mesmo tempo embaraçada e contente. mas eu já tinha visto mulheres nuas antes, acredite [risos]. agora, digo-lhe que é um desafio ver uma mulher nua ao nosso lado e não poder fazer mais nada do que estar quieto. normalmente, ajudaria à cena, mas neste caso não pude mexer-me.
em todo o caso vai ficar na memória dos espectadores que simulou um orgasmo no cinema…
vários orgasmos…
é verdade que, além da sua actividade como actor, também escreve?
sim, escrevo canções, histórias, poemas. má poesia. também tenho tocado em bandas em austin, texas, desde 1982. normalmente, quando um actor toca música diz-se que tem um grande ego. mas se for um músico a entrar num filme, já é óptimo. no meu caso, como actor, digo as palavras do outros, mas também tenho a minha opinião.
e compõe música, certo?
era mais do estilo, entrar numa carrinha e ir tocar com bandas. isto nos anos 80. toco vários instrumentos, mas acho que a guitarra é aquele em que sou menos mau. peguei na guitarra aos 11 anos porque queria ser como o meu irmão mais velho. mas nunca tive lições.
ultimamente, tem recebido imensas propostas e participado em inúmeros filmes. um dele é lincoln, de spielberg.
sim, ainda não o vi, e tenho apenas um papel secundário. aliás, há 150 papéis com diálogos no filme. não sei quando é que eu próprio vou entrar em cena… tive um ano algo frustrante porque há muitos projectos interessantes que me foram propostos, mas nem sempre é fácil encontrar financiamento. pode ser que um filme como este mude um pouco as coisas.