todos os seus companheiros do 25 de novembro tiveram projecção mediática. por que ficou sempre um pouco na sombra da história?
fiquei onde quis, a comandar o regimento de comandos. nunca fui um homem político.
quando foi contactado para a hipótese de fazerem um golpe de estado?
durante o verão 1975 havia reuniões com militares. estavam o eanes, rocha vieira, tomé pinto, garcia dos santos, gomes mota, firmino miguel e alguns civis, entre os quais o henrique granadeiro.
e reuniam-se onde?
em qualquer sítio. a primeira vez foi em casa do melo antunes, outra por cima do restaurante galeto, em lisboa.
tudo aconteceu a 25 de novembro porque a esquerda ocupou a base de tancos…
exactamente. eu estava preparado com o regimento há uma semana. tinha as viaturas carregadas com munições e com comida.
o que se passou quando foi tomar a polícia militar?
quando vou a passar na calçada da ajuda, vem um tenente-coronel a correr de dentro do palácio de belém que me grita: ‘oh pá, o costa gomes deu ordens e a polícia militar vai render-se’. sigo para cima e, quando vou a passar à frente de cavalaria 7, somos atacados. dois dos meus homens estavam mortos e o meu pessoal queria matar duzentos. tive que andar aos pontapés ao meu pessoal para não dispararem.
a partir do 25 de novembro deixa de ter intervenção?
sim, só me dedicava à vida militar. fico nos comandos até passar à reserva em 1981.
voltando atrás, o que mais o marcou na carreira militar?
estive na índia na primeira comissão. em moçambique estive pela primeira vez em 1959. em 1962 fui para angola até 1964, depois vou logo para os comandos. regresso a angola em 1965 e em 1966 mudam-me para moçambique, fiquei lá mais um ano e meio. em 1968 regresso e em 1970 volto para moçambique com uma companhia de comandos, depois de ter estado cerca de cinco meses em angola. sou promovido a major em 1972 e fico em moçambique até dezembro de 1973.
áfrica marcou-o muito?
sim. em 1973 cheguei a dizer ao meu pai que ficava em áfrica. eu gostava daquilo, sentia-me realizado.
qual foi o seu papel no 25 de abril?
arranjei um grupo de comandos, oficiais, sargentos e praças, aí uns 15 a 20 militares. fomos ter com o otelo, que nos deu como missão prender três comandantes de unidades. mas não fui buscá-los: vigiámos a casa dos três e estava tudo muito calmo. era difícil intervir sem provocar um grande alvoroço.
o que fez então?
fui para o terreiro do paço e esperei pela coluna de santarém. ainda vi o buraco por onde fugiu o ministro do exército para o edifício da marinha. entretanto, veio o salgueiro maia e aí tive o meu primeiro choque. quando estamos no meio da placa central, chega uma série de malta da margem sul, com bandeiras que dizem ‘nem mais um homem para áfrica’, ‘abaixo o fascismo’. e eu interroguei-me: isto foi feito com tanto secretismo e já há bandeiras?
está a dizer que havia uma articulação com o pcp?
tinha que ser, era o único partido organizado e nós éramos uma cambada de inocentes.
e a seguir?
segui para a penha de frança para ocupar o quartel. cheguei ao portão principal e saiu de lá um gajo alto com uma pistola que me diz: ‘senhor major, para entrar aqui só por cima do meu cadáver’. e eu disse: ‘por cima de quê? oh amigo, vai-te embora que eu não brinco com essas coisas’.
um dia disse que ‘o abandono de áfrica é o pior legado da revolução de abril’. acha que o processo de independência devia ter sido controlado por portugal?
sim, a nossa tropa controlava.
havia condições para isso, quando havia enormes manifestações a gritarem ‘nem mais um soldado para as colónias’?
vamos lá ver… se cá tivessem tomado medidas tínhamos agarrado o processo. não fizemos nada, pelo contrário. houve toda uma técnica que ninguém esperava que se notasse.
qual?
quando colocaram os cravos nas armas não foi por acaso.
por que foi então?
para as neutralizar. eu nunca deixei que o fizessem.
mas havia medo de, caso os militares utilizassem a força, os civis se revoltarem…
há maneiras de o fazer. lembro-me que já estava nos comandos e os deficientes foram sequestrar o governo manifestando-se em cadeiras de rodas. esqueceram-se que havia quem fosse mais esperto do que eles. eu fui num jipe civil e vi a manifestação. fui ter com os meus condutores das duas companhias de comandos e disse: ‘vamos descer em segunda e quero o máximo de rateres [explosões à saída do escape]’. eles não eram nada deficientes e, quando viram as chaimites, levantaram-se e desataram a correr.
largaram as cadeiras de rodas?
largaram tudo. carreguei duas camionetas com as cadeiras de rodas e as próteses para a amadora. fiz um aviso na rádio a todos que as quisessem. em 15 minutos levaram tudo.
como eram as relações com os seus companheiros de armas?
com o costa gomes fazia faísca, porque ele era um homem diabólico. veja só o percurso dele: é condecorado em angola com a mais alta condecoração da pide em 1973, e um ano depois, em 1974, virou à esquerda. o otelo tinha este país na mão. mas era um homem sem coerência e houve uma altura em que se convenceu que era bonito e sedutor.
e como foi o seu relacionamento com vasco gonçalves?
falei só para aí duas vezes com ele. encontrei-o em belém no dia 20 e tal de novembro de 1975 porque o costa gomes tinha-me mandado chamar. encontrei-o no corredor e ele começou a gritar pelos guarda-costas. eu ri-me.
como responde à polémica que surgiu com a sua recente promoção a general?
não respondo, mas há uma coisa que tem de ser dita: esta raiva que o vasco lourenço despeja em cima de mim sempre que pode tem duas origens. primeiro, ele tem uma verborreia crónica, ele tem de pronunciar-se de vez em quando. segundo, há uma coisa que ele não esquece: em 1975 eu disse no regimento que a ele nem para cabo o queria, e pedi desculpa aos cabos. ele não tinha categoria nenhuma…
voltou a falar com ramalho eanes?
tive uns contactos com ele muito frios. desde 1979 para cá devemos ter falado para aí umas cinco vezes. vamos lá a ver. somos do mesmo curso, estivemos na índia, em angola e moçambique juntos e até namorámos com duas irmãs. em princípio de 1979 ele informou-nos de que estava a ser muito pressionado para se recandidatar a presidente da república mas que não queria. a reunião terminou, tendo como conclusão de que ele não se iria recandidatar. passados 15 dias, vejo-o no estádio da luz. ele, que não gostava de futebol. aí pensei: ele não gosta de futebol e está aqui? só pode ser para se recandidatar…
nada mudou desde que ele propôs a sua promoção a general?
nada mudou.
julgo que agora já estará mais regrado quanto ao whisky e ao prazer pela comida…
eu gostava de beber uns copos, mas numa noite bebia apenas três whiskies. era só gelo.
gostava da noite?
gostava. a noite é um mundo excepcional, fazem-se amigos, inimigos, faz-se de tudo.
