Um homem de guerra em paz

Morreu no domingo, 27 de Janeiro. O coronel Jaime Neves, (para mim será sempre assim, a promoção a tenente-general não atrasou nem adiantou nada ao homem nem à obra).

a primeira vez que ouvira falar dele, fora ao general kaúlza de arriaga, com quem ele servia em moçambique, antes do 25 de abril:

«o neves é um routier, um homem de guerra. não tem medo de nada, agarra o pessoal como quer e quando quer e eles vão atrás dele para qualquer lado».

um routier, ‘um soldado de aventura’, segundo os dicionários. mas jaime neves era português do portugal profundo, um português corajoso, patriota e com aquela inteligência prática de quem cruzou e subiu caminhos mais difíceis.

oficial e combatente das últimas guerras do império, serviu na índia, em angola e na 28.ª companhia de comandos, em moçambique. foi dos ‘puros’ do 25 de abril, isto é de uma espécie que durou pouco, logo engolida pelos sovietes de telecomandados e pelos pequenos e médios intelectuais fardados de várias obediências e sensibilidades.

jaime neves não era nem pretendia ser desses. era um soldado, um homem de guerra e percebeu que, naquela tropa mais ou menos fandanga em que o mfa e o prec tinham transformado a maioria das unidades, ter uma força disciplinada, que fizesse ordem unida e manejo de armas, onde os soldados andassem bem fardados e obedecessem aos subalternos e estes aos oficiais, valia a pena.

articulou-se com o general soares carneiro, com victor ribeiro e com outros que paralelamente criaram a associação de comandos.

foi esta dupla – o regimento da amadora e a associação de comandos – mais a revolta do ‘outro povo’ do minho ao tejo, que contiveram, pela força, a força da esquerda armada e arruaceira e deram espaço para o reequilíbrio político dos finais de 1975.

estes reequilíbrios fizeram-no os partidos políticos do centrão, mais a direita da esquerda militar. eles sabiam, da história geral, que seriam os próximos na vaga e também temiam uma reacção pendular que levasse parte das ‘conquistas de abril’ – as nacionalizações, as metas socialistas, a própria legitimidade ética e léxica do antifascismo. mário soares e melo antunes colheram os furtos dessa estabilização e, nos anos seguintes, dividiram entre si o poder e a glória.

mas na verdade, quem, no 25 e 26 de novembro salvou o dia e a república, foram as cinco companhias de comandos de jaime neves. que, por sua livre e própria vontade, teria ido mais longe. e quem o parou não foi o dr. soares, nem o major melo antunes. talvez o quisessem fazer mas não tinham força para isso.

dessa paragem, desse empate técnico thermidoriano em que ainda hoje vivemos, e que foi e vai dando cabo do país, jaime neves não teve culpa. ele era de outra raça, de uma raça de portugueses para quem portugal valia mais, muito mais que o regime político.

paz à alma deste homem de guerra.