fui coordenador – enquanto vice-presidente do ppd/psd na liderança de durão barroso – da comissão para a reforma do sistema político. e entre as várias iniciativas em que trabalhámos contava-se exactamente um projecto de diploma sobre essa matéria.
na ocasião, eu exercia as funções de presidente da câmara municipal de lisboa e já tinha sido presidente do congresso da associação nacional dos municípios (quando liderei a câmara da figueira da foz).
nunca tendo pensado, até aos 40 anos, em ser autarca, envolvi-me profundamente nesse nível de intervenção política e de gestão territorial. fi-lo com todo o orgulho, e hoje conheço bem a sensibilidade dos autarcas. já na altura, em 2003 e 2004, percebi a revolta que causava entre eles a simples hipótese de uma limitação de mandatos.
pelos trabalhos desenvolvidos (inclusive com outras forças políticas, nomeadamente o ps), não tenho qualquer dúvida de que a motivação da lei foi limitar a três mandatos o exercício das funções de presidente de câmara num dado município. nunca esteve em causa interditar a candidatura a outros.
reconheço, todavia, que a redação da lei que veio a estatuir sobre a matéria (lei nº 46/2005, de 29 de agosto) se presta a equívocos. não é clara. foi aprovada em 2007, no tempo do governo de josé sócrates e quando luís marques mendes era o presidente do psd. diz o primeiro artigo dessa lei:
artigo 1.º
1 – o presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos, salvo se no momento da entrada em vigor da presente lei tiverem cumprido ou estiverem a cumprir, pelo menos, o 3.º mandato consecutivo, circunstância em que poderão ser eleitos para mais um mandato consecutivo.
2 – o presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia, depois de concluídos os mandatos referidos no número anterior, não podem assumir aquelas funções durante o quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo permitido.
3 – no caso de renúncia ao mandato, os titulares dos órgãos referidos nos números anteriores não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia.
cada um terá a sua opinião. mas, na verdade, a redacção do artigo não ficou clara. do n.º1 pode deduzir-se que o impedimento é em relação a um território; mas, no n.º 2, parece destinar-se mais à função, seja ela onde for.
o que não é claro presta-se, naturalmente, a equívocos. e o partido socialista, que não tem ninguém nessa situação em lisboa, no porto, em coimbra, em sintra, cascais, santarém, aveiro, faro, viana do castelo, bragança, viseu, setúbal, vila real, loulé, albufeira, mafra, funchal, ponta delgada – para citar alguns dos exemplos mais significativos –, sentiu-se à vontade para defender um entendimento que alarga a impossibilidade de candidatura a qualquer território.
certo que tem presidentes de câmara nessa situação, como os de castelo branco, guarda, évora, beja e amadora, entre outros. mas está, na verdade, numa posição completamente diferente.
foi pena, e ainda é pena, que não se tenham criado condições para uma clarificação legislativa. jorge sampaio disse-o, a 3 de abril de 2012, e eu concordo. é em situações como esta que a democracia portuguesa continua a falhar de modo incompreensível. os principais dirigentes políticos – incluindo o presidente da república – deveriam ter promovido essa iniciativa.todos ficariam a ganhar.
as candidaturas já anunciadas às duas principais cidades de portugal por pessoas que estão nessa situação vão deparar-se com uma questão que há muito deveria estar resolvida.
a comissão nacional de eleições já expressou o seu entendimento de que a norma se aplica, em cada caso, só a um município: aquele em que a pessoa tenha exercido funções. pelos vistos, não chegou. diz-se agora que será cada tribunal a decidir sobre o assunto, na ocasião.
entendo que é demasiado tarde e a dúvida não pode subsistir. em matérias como esta, não é nada dignificante a utilização de ‘truques’, de expedientes, de aproveitamento de ambiguidades no articulado de uma lei.
portugal, o seu sistema político, os eleitores e aqueles que se candidatam merecem uma solução digna. deixar arrastar dúvidas destas não é justo e é um risco.
repito: por mim, não tenho dúvidas quanto à ratio legis. mas se elas existem, que sejam prontamente esclarecidas. mais do que planos b, é seguir o abc da vida (e, portanto, também da política): é sempre preferível a clareza. de contrário, pode ser uma bomba ao retardador.