esta entrevista foi difícil de marcar. no último ano passou meses a fazer investigação em nova iorque, foi nomeado consultor do conselho pontifício para a cultura e vice-reitor da universidade católica e ainda editou três livros. como se coordena tudo isto?
com organização e trabalho. não me custa fazer as diversas tarefas em cada dia. gosto da diversidade de trabalhos que me são dados. é um modo um pouco nómada de deslocar o olhar.
acaba de editar o estado do bosque (ed. assírio & alvim), peça agora posta em cena na cornucópia, por luís miguel cintra. em 2005 escreveu perdoar helena. por que quis regressar ao teatro?
começou por uma sugestão de marcos barbosa, que dirige o teatro oficina de guimarães. desde o princípio que a peça seria representada pelo luís miguel cintra. mas não foi possível continuar o projecto lá e o luís miguel cintra quis encená-la, o que me encheu de alegria.
os nomes das personagens não são portugueses. foi escrita em nova iorque?
comecei cá, acabei lá. são nomes que apontam outras geografias, tem a ver com uma língua nova na qual habitamos.
em estação central também se sentem os ecos nova-iorquinos. a geografia condiciona-lhe a escrita?
é um ponto de diálogo. a minha escrita é ancorada na existência, na realidade que vivo, no mundo que me cerca.
como foi assistir aos ensaios?
foi uma experiência comovente, os actores apropriam-se do texto. os seus corpos e escolhas revelam-me o meu texto.
é difícil senti-lo fugir-lhe?
não, é gratificante. a obra só é em parte do seu criador primeiro. a leitura é um pacto criativo. o legente, como dizia a maria gabriela llansol, é um co-criador, preenche os vazios da própria narração. o texto é apenas um princípio de conversa que a leitura vai continuar.
como foi o processo de trabalho com luís miguel cintra?
o texto tem permitido um grande diálogo epistolar. o que tem sido importante para aprofundar questões que estão na peça e não só. temos conversado sobre teatro, literatura, fé, religião, o caminho da vida. conversas cheias de graça.
a peça tem muitas leituras possíveis.
essa abertura é uma marca dos meus textos. a escrita é sempre um corpo provisório, tem de transportar uma porosidade muito grande.
a sua leitura e a de luís miguel cintra coincidem ou divergem?
creio que se complementam. ao mesmo tempo que falamos e nos escrevemos, há um silêncio muito grande. nunca lhe disse o que a peça era para mim e ele nunca me disse o que a peça era para ele. é importante o que se diz e também o que não se diz. o silêncio é importante.
que bosque é este?
é o espaço da vida, o lugar onde estamos, o aqui e agora. habitamos o território habitual da nossa vida de forma quase sonâmbula, sem que as coisas nos devolvam o seu fulgor, vibração ou inquietude. pode ser assustador atravessarmos o mundo deixando-nos interrogar e interpelar pelo que existe. mas também pode ser redentor e iluminador.
uma personagem diz: «esta manhã acordei vazio, dentro de mim não restava nada». acontece-lhe?
acontece-me. e também me acontece deitar-me vazio. a nossa humanidade é assim, feita desses estados que nos ajudam a mergulhar a consciência em níveis mais profundos de nós próprios.
escreve que pode ser cedo para as respostas. há uma altura na vida para elas?
agradeço muito as perguntas. por exemplo, como leitor habitual dos evangelhos, sou muito sensível às perguntas de jesus. penso que se poderia contar jesus sobretudo a partir das perguntas. dou muito valor às perguntas de cada momento da minha vida. quais são as perguntas de cada tempo. as respostas são o intervalo entre as perguntas.
sendo a fé o lugar onde se procuram respostas, a ideia pode ser assustadora.
mas a nossa condição humana é interrogativa. não sei se a resposta virá. sei que a pergunta me disponibiliza para a escuta. a fé é uma ardente e incessante interrogação, leva-nos de pergunta em pergunta, não é um livro de respostas. pelo contrário. é um caminho de confiança, mais do que uma via de certezas.
diz que é à noite que o bosque deixa de ser cegueira. precisa do escuro?
a noite é um lugar muito importante na minha reflexão e na minha poesia. não é por acaso que o título da minha obra reunida é a noite abre meus olhos. a noite torna-se a representação melhor daquilo que é a procura, o questionamento, a nossa condição. não apenas a noite física mas aquilo que a noite pode significar, como contraposição, ou ligação, ao que é o dia, à nossa vida sistematizada ou organizada de um determinado modo. a noite é um campo aberto, fundamental para que a vida respire.