Dustin Hoffman: ‘O meu irmão era um aluno brilhante, eu era um falhado’

Quando se fala nos melhores actores de sempre, é natural que o nome de Dustin Hoffman entre na conversa. Motivos não faltam: O Cowboy da Meia Noite, Kramer Contra Kramer (que lhe valeu o primeiro Óscar), Tootsie – Quando Ele Era Ela, Encontro de Irmãos (segundo Óscar)… A lista continua. Numa carreira com mais de…

sentados numa poltrona do soho hotel, em londres, revivemos o passado do actor. dustin hoffman gosta de falar e pontua cada resposta com uma história. leva-nos numa visita pelos altos e baixos da sua carreira e vai precisando com exemplos a forma como encara a vida. mas fala também dos seus demónios.

aos 75 anos, parece ter conseguido dominá-los, mas sem perder a vivacidade que caracterizava muitas das suas personagens. afinal, envelhecer pode ser cool. é isso que transparece de quarteto, o filme que marca a sua estreia na realização. a história passa-se na mansão que giuseppe verdi terá mandado construir antes de morrer. no seu testamento, o compositor italiano estipulou que todos os cantores e artistas de ópera que conhecera ao longo da vida poderiam habitar a casa após a sua partida deste mundo. a casa ainda existe. fica perto de milão e mantém o nome do primeiro proprietário.

por que decidiu estrear-se na realização só aos 75 anos?

é um prazer enorme dirigir actores que sabem o que estão a fazer. ou mesmo não actores, como muitas das pessoas que participam neste filme – músicos e cantores de ópera retirados. só assim consegui que fossem espontâneos. por isso posso dizer que esta foi talvez a melhor experiência que alguma vez tive.

por que não o fez antes?

há muitos anos que queria realizar um filme. quando andava na escola de cinema costumava ajudar actores nas cenas mais difíceis de representar. e já nessa altura me diziam que deveria ser realizador. só que eu receava perder a oportunidade de me tornar actor.

era daqueles actores que observam o comportamento do realizador a todo o momento?

claro. todos os actores fazem isso. o cinema é uma arte com cem anos, muito nova, portanto. e a verdade é que não estamos ainda muito familiarizados com todos os seus processos de criação. por exemplo, se estamos num palco, podemos não concordar com outro actor ou com o encenador, mas quando o pano se abre, o palco é nosso. aí estamos em controlo. num filme, já temos a obrigação de agradar ao realizador. mesmo que ele nos diga para fazermos coisas que estão erradas. alguém tomará as decisões. e a verdade é que todos os actores acabam por construir uma armadura que os protege. se formos para a cama com eles – no sentido de que vamos fazer o mesmo filme –, é bom que tenhamos um sentido de humor semelhante ou uma escala de emoções idêntica.

é verdade que já tentou realizar um filme mas acabou por se despedir a si próprio?

sim. foi no filme straight time [beco sem saída, de 1978], sobre um antigo condenado que acompanhei durante anos para desenvolver esse projecto. a ideia era eu realizar, produzir e interpretar. eu fazia tudo. mas quando começámos a filmar verificamos que o som não tinha playback, o que me deixou muito confuso. por isso mesmo decidi demitir-me, o que acabou por me traumatizar.

foi por isso que demorou tanto tempo, mais de 30 anos, a regressar à realização?

hollywood é assim: apenas acredita naqueles que dão provas. eu acreditava muito em mim próprio, mas não tanto para realizar. ao longo dos anos, desenvolvi algumas ideias, mas acabava sempre por achar que não estavam suficientemente amadurecidas. por exemplo, o meu amigo warren beatty, que é um excelente realizador – e acho que deveria fazer mais filmes –, disse-me uma coisa muito importante: ‘dustin, nunca esperes até que um guião esteja perfeito, porque nunca vai estar’.

mas o que o levou especificamente a escolher o filme quarteto para se estrear como realizador?

porque me foi oferecido. e porque era acompanhado pelo som dos ponteiros de um relógio que não parava de bater. quando me colocaram entre a espada e a parede, em que tinha de aceitar ou abandonar, acabei por… recusar. só que a minha mulher obrigou-me a aceitar… [risos]

e por que disse que não?

se pudesse estaria sempre a pesquisar e ensaiar. e nunca começaria a rodagem.

sempre foi considerado um perfeccionista…

pense bem: o que quer isso dizer? se temos algo dentro de nós que nos diz que somos capazes de fazer melhor, iremos querer fazê-lo de novo, não é?

tem 75 anos e falou há pouco num relógio que não parava de bater. foi complicado enfrentar o tema do envelhecimento neste filme?

mas eu não tive de o enfrentar: eu sou velho! [risos]

mas não se reformou. continua a trabalhar. apesar de ter feito uma paragem de cinco anos.

isso é verdade. mas vocês em portugal não têm um realizador… como se chama?

manoel de oliveira?

isso. o manoel de oliveira é uma pessoa que eu venero. é para ele que eu olho. tem 104 anos e continua a fazer filmes. e percebe-se que tem todo o amor e carinho por cada filme que faz. para ele, filmar é como viver.

no seu filme há uma frase recorrente, atribuída a bette davis, que diz ‘a idade madura não é para medricas!’. também acha isso?

acho. medricas é coisa que não sou. [risos]

enquanto actor, qual foi para si o papel mais ousado nesta sua longa carreira?

não sei…

houve vários?

talvez. mas eu sempre senti a obrigação de andar perto dos limites. quando não nos podemos dar ao luxo de escolher, coisa que muitas pessoas não têm, temos de aceitar os papéis que nos oferecem para podermos continuar a viver. mas, se pudermos, devemos escolher um no qual não nos sintamos…

… totalmente confortáveis?

isso. confortáveis. o desafio é andar perto dos limites, mas com cuidado para não cair no vácuo.

é verdade que a sua mãe foi para si um modelo inspirador e que terá sido ela a inspirar a sua personagem de dorothy em tootsie?

a minha mãe não foi um modelo mas é verdade que me chamava ‘tootsie’ quando eu era miúdo. acho que herdei isso dela.

e como era ela?

o que posso dizer é que como mulher e como actriz não era uma pessoa particularmente atraente. mas recusava-se a parar de trabalhar. como nos meus filmes procuro ter sempre uma história para as personagens que interpreto, pensei que poderia levar essa característica. tootsie interessar-se-ia apenas por homens que não a achavam atraente. por isso decidi que ela optaria por casar-se com o trabalho.

fez um interregno de cinco anos como actor. qual foi o motivo?

quis compreender os meus demónios…

e quais são eles?

os meus demónios? ao olhar para todo o meu trabalho, achei que ele de certo modo me tinha afastado da vida. talvez por não conseguir perceber que vida vivera enquanto fiz esses filmes. achei que a minha vida era como um queijo suíço, cheia de buracos. talvez agora, ao avançar na idade, tenha menos buracos.

é verdade que se tornou actor porque em criança se sentia um pouco falhado?

não, não. eu não me sentia um pouco falhado, eu era um falhado.

quer explicar um pouco melhor o que quer dizer com isso?

eu explico: a percepção que temos de nós próprios nos primeiros anos de vida, aí por volta dos três anos, quando tomamos conhecimento de quem somos, nunca nos abandona. e essa coisa frágil chamada ‘pais’ pode facilmente, e involuntariamente, magoar os filhos. para mim, o mais importante para uma criança é o amor dos seus pais. de alguma forma conseguimos sentir aquilo que os nossos pais pensam de nós, para depois lhes devolvermos aquilo que pensamos ser a melhor forma para receber o amor deles.

como foi a sua vida em criança?

o meu irmão era o aluno brilhante, o atleta completo; eu não era nada disso. na escola não me conseguia concentrar e sei agora que até deveria ter gostado mais de estudar, porque gosto de aprender, gosto de ler. mas acho que fui programado para saber que o meu irmão era o bem-sucedido e eu o falhado. essa sensação nunca me abandonou. os anos da adolescência foram os piores da minha vida.

a sua entrada no mundo do ‘faz de conta’ foi a forma que encontrou para dar a volta à sua vida? uma espécie de terapia?

correcto. eu acredito na terapia, quando temos um bom terapeuta. mas acho que há muito poucos que são mesmo bons, por isso, cuidado… [risos] penso que para tudo existe um motivo consciente e um motivo inconsciente. ora, eu acredito que somos governados pelo lado inconsciente, achando que estamos a tomar decisões correctas. ainda que anos depois venhamos a achar que foi errado. foi através da terapia que eu tomei conhecimento de mim próprio. até aí eu nunca me tinha percebido. achava que era um ser fragmentado. a primeira vez que me senti coeso foi quando interpretei outra pessoa.

partilhou um apartamento com o robert duvall e o gene hackman. chegou a partilhar com eles essa sua vontade de realizar?

sim, falámos sobre isso várias vezes. e delirávamos com a ideia. falei com o duvall, falei com o malkovich… mas, lá está, eu tinha os meus ‘demónios’… agora, não me parece que nenhum de nós não tenha dito, a dada altura, ‘por que não aprendi a tocar aquele instrumento ou não aprendi aquela língua…’. há certas coisas que nos escapam e depois já não conseguimos recuperá-las…

a sua carreira atravessa quatro décadas. qual é para si a grande diferença entre a hollywood dos anos 60 e 70 e a de hoje?

em primeiro lugar, nos anos 60 e 70 não sabíamos que estávamos a viver a era dourada do cinema. a diferença é que os grandes estúdios faziam aquilo que os filmes independentes fazem hoje. ou seja, ficavam contentes por reaver o investimento. hoje, os executivos perdem o lugar se tiverem um fracasso. porque o seu alvo, os miúdos que vão ao cinema, são mais de 100 milhões. isso é um mercado. por isso são hoje os filmes independentes que dominam os óscares. não são os filmes de estúdios. mas não me parece que exista falta de talento. não sou bom em nomes, mas os óscares vão estar cheios deles.

sente que há momentos na sua vida que gostaria de reviver?

sim. todos eles.

algum em particular?

não, tudo mesmo. nós temos uma expressão nos estados unidos que diz assim: ‘a vida não é uma prova de guarda-roupa’. mas está errada. a vida é mesmo uma prova de guarda-roupa.

sente que alguma vez se viu livre dessa ideia de fracasso de que falou?

sim. e ninguém o disse melhor do que o poeta e. e. cummings: «sou um homem, sou um artista, sou um fracasso. mas o falhado deve prosseguir».

agora que conseguiu superar-se, o que sente?

é como uma vingança.

online@sol.pt