daí alguma simpatia, mas sobretudo a mordacidade triunfante daqueles a que dostoiewsky chamava «os fanáticos da impiedade».
para os católicos, a perplexidade tem a ver com a originalidade do gesto de bento xvi. desde que a igreja se libertou da tutela política dos imperadores, dos reis, das famílias romanas que impunham os seus parentes como papas e até das servidões do seu próprio poder, que nenhum pontífice fizera isto.
e este não é um pontífice qualquer: teve a difícil missão de suceder a um papa carismático e popular, amado de todos; teve que chefiar a igreja num dos períodos mais difíceis da história, com a descristianização da europa ocidental, e o catolicismo das américas e das áfricas, pujante mas às vezes cheio de heterodoxias e crendices. e teve, sobretudo, que enfrentar uma coligação de forças laicas que a guerra fria mantivera na aliança com as forças espirituais, mas que, sem medo ao comunismo, se lançara na agressão do ‘fanatismo da impiedade’.
bento xvi combateu corajosamente esta agressão e o relativismo moral que a fundamenta; procurou o diálogo com o islão e a concórdia entre as religiões do livro; trabalhou pela unidade na pluralidade de ritos e obediências de católicos e de cristãos; esclareceu com sabedoria, coerência, rigor e humildade as grandes verdades da fé em livros seus e encíclicas da igreja. nunca teve medo.
travou uma luta determinada, corajosa, dolorosa, contra o grande escândalo da pederastia e pedofilia entre os sacerdotes e da corrupção financeira em sectores da administração apostólica.
o mal que os maus pastores fizeram às suas vítimas e à própria igreja, o papa sentiu-o mais que ninguém. a igreja sempre foi forte contra os ataques de fora, como as perseguições e os martírios que, do anticlericalismo dos jacobinos às matanças de espanha e aos gulags comunistas, lhe foram impostos. aí resistiu e teve os seus mártires.
mas o mal de dentro, dos sacerdotes pedófilos, dos predadores dos pobres e das crianças, dos maus pastores, foi pior. e bento xvi teve que enfrentar esse flagelo, na linha da frente da autoridade e da decisão.
desistiu, foi vencido, desceu da cruz por não a poder aguentar? para os providencialistas, a igreja está – como tudo – nas mãos de deus e há que confiar; para os liberais, o gesto do papa é um sinal de democracia de uma instituição que não tem nada a ver com ela e por isso os irrita e incomoda.
para nós, o papa que é também um homem – joseph ratzinger, tomou, com certeza depois de muita meditação e oração, essa decisão drástica, acreditando tal ser o melhor, não para ele, mas para a igreja. porque o papa, enquanto vicarius christi, não renuncia, mas o homem pode e deve fazê-lo, se acha ser esse o seu dever e a vontade de deus.