O que não sabe acerca de José Avillez

O meu primo mais novo será pai em breve. Ainda ‘ontem’ passeava com ele no Jardim Zoológico e agora, passados apenas uns poucos anos, que parecem minutos, tem já uma parte de si a caminho. Contei-o a José Avillez – «Sabes que sou primo direito do Nuno Bergonse, ex-chefe do restaurante Pedro e o Lobo?…

o maior dos chefs portugueses conhecia-o. quis saber mais, antes de prosseguirmos na conversa/viagem que poderá ser vista na próxima semana, na rtp.

almoçámos no cantinho do avillez, depois de termos visitado o belcanto, top dos tops da sua cozinha. preparou-me uma entrada de peixinhos da horta e fígado. ele não sabia que eu detestava fígado e eu não fazia ideia que, afinal, gostava de fígado, do que comi naquele princípio de tarde, no chiado.

cada vez mais difícil encontrar pessoas assim. que ganham, têm sucesso, mas não perdem a simplicidade e a preocupação com o que na vida transcende os seus umbigos. perguntei-lhe se é uma tentação passar a ser de outra maneira, respondeu-me com o tempo no el bulli, o restaurante mais premiado do mundo nos últimos trinta anos – ferran adrià encerrou-o para desenvolver o projecto da sua vida, uma enciclopédia universal da cozinha que o tornará a referência não só do passado, mas também do futuro.

josé avillez estagiou com adrià. fora recomendado por um jornalista espanhol amigo do mítico chef, chegou incógnito e disponibilizou-se para o que fosse preciso. num dos primeiros dias de estágio, numa pausa, um dos braços direitos de adrià apanhou-o a ouvir as mensagens do telemóvel. passou a ter que fazer o que os outros não faziam, limpar a cozinha e tudo o mais. durante várias semanas, quando se deitava, quase de madrugada, sentia-se a perder o pé, desesperado de cansaço e à procura de um sentido para acordar com energia.

recebeu uma mensagem do jornalista. dava-lhe os parabéns pelo lugar e queria saber como estava a correr. tudo corria bem, contou-lhe o jovem avillez; o trabalho era duro mas a experiência inesquecível, nunca saberia como lhe agradecer. adrià teve conhecimento da resposta. surpreendido ficou. porque aquele rapaz, que lhe diziam ser um privilegiado de famílias nobres portuguesas, tinha capacidade de sacrifício. chamou-o e perguntou-lhe se ele era mesmo assim… porque se o fosse, podia ser grande. nomeou-o para o seu grupo de inovação, o máximo a que todos os aspirantes do mundo poderiam ambicionar.

josé contou-me essa história para que eu percebesse. se fosse de outra maneira, se a vida fosse apenas o que está em redor do seu umbigo, nunca teria conseguido ver mais longe.

e não é verdade que seja um fidalguinho para quem tudo lhe foi fácil, pelo contrário. percebi-o na quinta da bicuda, onde vive a sua mãe, maria de fátima. estive na sala e entendi o que me contara horas antes – o desejo de inaugurar uma pizzaria, sonho que tornará realidade em breve, representava muito mais do que um negócio. na verdade era uma prova de amor pelo pai josé ereira que, nos seus primeiros passos de juventude, lhe(s) morreu sem aviso. um pai que, entre outras coisas, geria um restaurante italiano onde as pizzas eram imagem de marca. ao estar com maria de fátima avillez (que bonitas e felizes as suas fotografias com o marido) julguei perceber o quanto o filho josé conteve as lágrimas ao tornar ao instante em que, jovem e indefeso, se obrigou a si próprio a abdicar da adolescência e a tomar conta da família.

sem isso talvez não tivesse sido cozinheiro. a mãe quis que fosse arquitecto ou qualquer outra coisa que fosse uma prova de construção e de pacto com o futuro. mas cozinheiro? cozinheiro, quis. com a mesma convicção que teve perante a partida do pai.

não quero ser místico, por isso isto fica entre nós. no pátio da casa, frente a frente, ao falar-lhe das suas memórias, da espingarda que o avô guardou das caçadas com d. carlos, do pai ou da avó babette, uma brisa de vento, num dia sem brisa alguma, fez-nos sorrir e falar de coincidências. pois.

o meu primo nuno será pai em breve, comecei por dizer. com grande talento, apenas 24 anos e já capa de várias revistas, tem o mundo à sua frente e uma simplicidade que é marca de água. que não a perca pelo caminho. como josé avillez parece ter conseguido – apesar da estrela michelin, apesar de tudo lhe correr bem e de somar prémios como eu somo caracteres nas palavras que escrevo.

de famílias brasonadas, mas assumido republicano. pai de dois filhos que, todos os dias, o obrigam a pensar no que é essencial ou um mero pormenor. ser um pai ausente angustia-o. quer deixar-lhes a imagem de alguém que, até ao fim da vida, tentará provar que os melhores lugares são os que ainda não foram inventados.

por isso, quando quis saber qual seria a sua última refeição, deixou-me também a pensar: «ficaria indeciso entre criar um último prato e comer um pão com manteiga. indeciso entre procurar até ao último dia da minha vida ou acabar regressando ao mais simples que um homem pode ambicionar». l