Não há música

Não deixa de encerrar um toque de ironia trágica este reentoar do ‘Grândola’ com que os contestantes do Governo e da troika desceram no sábado à rua.

é que, em boa verdade, foi com a música detonadora do golpe do mfa que o país iniciou, não só o caminho da democracia, mas também o da decadência económica a que chegou.

a revolta, o desespero, a desilusão, os rostos em fúria, os slogans e palavras de ordem, os cartazes insultuosos ou imaginativos, tudo isso e a razão e desrazão que levam consigo, são um símbolo – mais um – da tragédia nacional. o problema é que o país, não bastasse a crise consequente das alterações territoriais e políticas de 1974-75 e das enormes perdas económicas consequentes, iniciou então uma marcha para a decadência. se perdeu activos na década de 70, com as ‘nacionalizações’ gonçalvistas, se alienou soberania a troco de vantagens económicas com as adesões à união europeia e ao euro, tão pouco foi capaz de, ao menos, utilizar com inteligência e estratégia os recursos financeiros directos e indirectos que esses passos trouxeram.

e com quase 20% de desemprego e o dobro entre os jovens, com as pequenas empresas vítimas da purga fiscal, não se pode dizer que não haja razões para desesperar.

mas à crise nacional junta-se uma crise geral em toda a zona sul da união europeia: à recorrente crise grega juntam-se crises na espanha e na itália. a espanha enfrenta a pior situação económico-social desde o fim da guerra civil e do bloqueio e está a vivê-la com grande crispação e violência social, aumentadas pelas reivindicações nacionalistas da catalunha e do país basco. nesse quadro, a instituição monárquica, poder arbitral e moderador, está abalada no seu prestígio pelos escândalos familiares.

a itália, entre a ressurreição de berlusconi e a dimensão do voto antipolítico no grillo das cinco estrelas conseguiu, após as eleições, um quadro de ingovernabilidade garantida a que o bónus artificial de uma maioria de centro-esquerda inferior a um ponto não ajuda. a frança assumiu, tarde mas responsavelmente, a defesa do flanco sul europeu, mas não tem muitos aliados e entre as baixas e as ameaças terroristas à metrópole francesa, veremos quanto tempo dura a determinação de hollande no mali.

na grã-bretanha, à pressão dos eurocépticos do partido conservador, junta-se agora o extraordinário sucesso numa by-election do partido anti-europeu ukip – united kingdom independence party – que ficou em segundo lugar na cidade de eastleigh,antes um bastião conservador. nigel farage, o líder da ukip e deputado europeu que o circunspecto ft classifica de «carismático», comentou assim, ironicamente, a fracassada modernização dos tories: «os conservadores costumavam falar de livre empresa e agora falam de centrais eólicas e de casamento gay».

neste panorama europeu e nacional, não há música, seja a ‘grândola’ do zeca afonso, seja a ‘quinta’ do grande beethoven, que salvem.