Teatro: A visita envenenada

A Visita da Velha Senhora, escrita em 1956 por Friedrich Dürrenmatt, está em cena do Teatro São Luiz, em Lisboa, até 27 de Março, numa co-produção com a Ao Cabo Teatro e a Companhia Maior, encenada por Nuno Cardoso a partir do texto do dramaturgo suíço traduzido por João Barrento.

o cenário é deprimente. gullen é uma cidade empobrecida, onde em tempos idos goethe pernoitou e brahms compôs um quarteto. agora nada resta aos seus habitantes senão a sopa dos pobres e o subsídio de desemprego. não há trabalho, não há esperança. nada resta senão recordar antigas glórias enquanto se vê os comboios passar. mesmo esses já não param, apenas cruzam a linha velozmente, de veneza a estocolmo. ao fundo do túnel há apenas uma luz: a vinda de clara zahanassian, uma velha milionária que ali nasceu há longos anos e que retorna à cidade natal quase meio século depois de a ter abandonado. todos esperam a sua generosidade e que o seu dinheiro faça a vida retomar. mas o preço a pagar pode ser demasiado elevado. e a dádiva envenenada.

com 24 actores, fazem parte do elenco a absolutamente extraordinária maria joão luís, que dá corpo a esta grotesca velha senhora, tónan quito, o polícia de serviço e cândido ferreira, o presidente da câmara.

a ideia para levar o texto à cena partiu de josé luís ferreira, director artístico do são luiz, que a propôs a nuno cardoso. o desafio foi logo aceite. «quando viemos fazer aqui a apresentação, no ano passado, do medida por medida, dissemos que estávamos – e estamos – a usar o teatro de reportório para pensar a situação actual e a conjuntura em que vivemos. e o josé luís falou-nos de a visita da velha senhora. tinha ideia de que tinha sido a base para o guião do dogville, do lars von trier, e fomos ler. achei a peça fantástica e uma parábola justa para os dias de hoje», conta nuno cardoso.

um risco incalculável

depois foi uma questão de pôr a ideia em prática. a ao cabo teatro aderiu e o são luiz deu total apoio. depois propuseram à companhia maior uma união de forças. «quis fazer este espectáculo com pessoas que tivessem sido adultas nestes últimos 30 anos e confrontá-las com este texto agora já numa idade mais avançada», explica o encenador.

o resultado é um verdadeiro luxo: 24 actores em palco. um luxo para o espectador que é um risco para a companhia. num momento em que ainda não estão decididos os apoios a atribuir pela dgartes para os próximos tempos, fazer «um tour de force que é uma declaração da importância do teatro» pode significar um imenso aperto financeiro. «arriscámos e estamos a fazer este espectáculo um bocado sem rede. vamos estrear antes de sabermos de possíveis subsídios. o que significa que se a ao cabo teatro não for subsidiada, vamos ter que andar a trabalhar nos próximos três anos para pagar este espectáculo».

nada que não valha a pena. para nuno cardoso, o teatro não se deve desresponsabilizar. e, daí, levar-se à cena uma peça que, como diz, é uma parábola aos dias de hoje. «a visita da velha senhora é a história de uma cidade arruinada que deposita as suas esperanças num tiro no escuro, a mulher mais rica do mundo, que poderá solucionar os seus problemas. e nesse contexto jogam-se todas as pequeninas virtudes e pequeninos defeitos dos cidadãos. e, ao mesmo tempo, põe-se a comunidade em causa e as suas decisões».

para nuno cardoso o paralelo com a situação portuguesa é notório: «nós vivemos numa situação, como as manifestações de sábado passado demonstraram, de profunda desesperança. somos um país que não vê a dita luz ao fundo do túnel que nos é prometida todos os anos pela altura do natal e dos discursos institucionais e que nos é desmentida logo nos relatórios trimestrais de janeiro». e, se gullen recebe a visita da velha milionária, portugal recebe a da troika. «troika que, por sua vez, nos empresta dinheiro a troco de austeridade que é, acima de tudo, uma degradação da nossa condição enquanto cidadãos e enquanto seres humanos», assume nuno cardoso. «como diz o presidente da câmara: vamos fazer um grande banquete mas infelizmente já não temos dinheiro para acender as luzes da igreja matriz».

rita.s.freire@sol.pt