Portugueses são maiores consumidores mundiais de ‘ice tea’

No capítulo VII do romance de Lewis Carroll, Alice é convidada para um lanche com o Chapeleiro e a Lebre de Março. Ali, o Tempo encontrou uma forma bem original de punir o Chapeleiro: parando nas seis horas – a hora do chá. Noutro clássico da literatura juvenil, as Aventuras de Asterix, também não faltam…

explicação? «a maior presença do consumidor em casa, com mais consumo alimentar no lar e redução em restaurantes e cafés», justifica uma fonte da empresa de estudos de mercado.

no ano passado, em cada 100 lares, 66 compraram chá pelo menos uma vez. e as chávenas encheram-se sobretudo com infusões de ervas (camomila, tília ou cidreira), preferidas por 67,4%. seguiram-se o chá verde, com quase 17% de quota, o chá preto (12,1%) – ambos derivam da planta camellia sinensis – e, por fim, infusões de frutas.

«o mercado manteve-se estável nos últimos anos, mas em 2012 cresceu 7% em valor», nota fonte da lipton, quanto ao chá quente. «portugal é um país de infusões, caso único na europa, já que a maioria dos países tem no chá preto o seu principal segmento». as infusões lideraram o crescimento.

outra particularidade nacional está no consumo de chá frio. os portugueses têm o maior consumo per capita do mundo: 26 litros por ano, segundo a lipton, que está em mais de cem países. esta categoria é, diz joão vale, «o motor de crescimento de bebidas refrescantes, crescendo 4% ao ano, em valor e em volume». a variante com sabor a manga, por exemplo, é exclusiva das lojas nacionais.

«em 2012, os portugueses voltaram a descobrir o mundo do chá e as múltiplas ofertas existentes», continua o responsável pelo segmento do chá frio, referindo-se ao facto de terem sido os lusitanos a descobrir a planta no japão, em meados do século xvi. depois, foi a bordo dos galeões portugueses que as primeiras folhas de chá chegaram à europa. e deve-se à infanta portuguesa d. catarina de bragança – casada com o rei carlos ii de inglaterra e portadora de uma arca de chá da china como presente de casamento – a difusão do hábito de desfrutar da bebida em territórios de sua majestade.

porém, portugal parece não ter tomado logo o gosto à bebida. o controlo das rotas comerciais pertencia a holandeses e ingleses. e a moda de ir a casas da especialidade – nesta época chegou a haver mais de 3.000 em londres – também tarde pegou em terras lusas.

hoje, é certo que por cá ainda não se bebe chá às refeições como noutros países. mas há novos hábitos a entrar em ebulição. «temos oportunidade em portugal de promover o hábito mais regular do consumo de chá, reforçando a sua presença ao pequeno-almoço e ao lanche e abandonando a ideia de que só se bebe chá no inverno ou quando estamos constipados», acreditam os responsáveis da lipton.

estudos internacionais têm evidenciado os benefícios do chá para a saúde – as suas propriedades antioxidantes e preventivas do cancro e de doenças cardiovasculares, por exemplo, são bem conhecidas.

nas cidades portuguesas, as casas de chá multiplicam-se. há novas marcas a chegar às lojas, como a harney & sons, duas vezes distinguida com o ‘óscar’ desta indústria, o top london afternoon tea awards, que começou a ser comercializada no país em junho passado. e os grandes retalhistas (como o continente ou o pingo doce), cujas marcas próprias de chás e infusões também têm conquistado bebedores, estão cada vez mais atentos a este sector que em portugal movimenta mais de 440 mil quilos de chá e vale acima de 20 milhões de euros, de acordo com números de 2011.

um chá que eleva o espírito

a fábrica da gorreana, criada em 1883, na ilha açoriana de são miguel, espelha essa tendência. vende para o pingo doce há dois anos e hoje a rede de supermercados é a sua principal cliente. além disso, está em negociações para chegar às prateleiras do continente ainda este ano.

«o café bebe-se num golo e as pessoas nem se sentam. o chá pressupõe parar três ou quatro minutos no mínimo. convida a sentar. e quanto mais stresse tem a população mais o chá agrada. eleva o espírito e convida à sabedoria», conta o proprietário da gorreana, hermano mota, de 70 anos, ligado à empresa há quase cinco décadas.

naquela que é a mais antiga e uma das duas únicas produções de chá na europa – a outra é a vizinha fábrica do chá porto formoso – as vendas baixaram 15% no último ano. as de chá verde foram as que mais esfriaram.

a crise e o encerramento de dois importantes compradores, um nos açores e outro na madeira, trouxeram amargos de boca. mas hermano mota acredita que voltará aos resultados de anos anteriores, em que cresceu «continuamente». «o consumo de chá em portugal deve estar entre 20 e 30% acima do que estava há cinco anos», diz. o chá verde «subiu mais de 50% em dez ou 12 anos».

com um volume de negócios de cerca de 850 mil euros, e entre 30 a 40 trabalhadores, consoante a fase de produção, em 2012 a gorreana fabricou 37 toneladas de chá. dessas, vendeu 33 toneladas: 21 de chá verde e 12 de preto. na campanha deste ano, espera produzir 40 toneladas.

cerca de 90% da produção é consumida no mercado interno. mas os turistas e os estrangeiros também estimulam o negócio. para frança, há quatro anos a gorreana começou por enviar 400 quilos de chá. agora, são 3.000. o mesmo segue para a alemanha. «à quarta-feira, os correios daqui trabalham quase só para nós», para dar resposta às pequenas encomendas de clientes estrangeiros que chegam por telefone ou e-mail e que totalizam 500 quilos de chá, descreve hermano mota. mas também revela que nem tudo é doce neste negócio. «estamos a competir com países como o bangladesh ou o vietname, que produzem chá mais barato».

dominada pelos países asiáticos, a produção de chá é encabeçada pela china, seguida da índia. os dados mais recentes disponibilizados pela organização para a agricultura e alimentação das nações unidas (fao), de 2010, indicam que o império do meio garantiu 33% da produção mundial, que nesse ano subiu 4,2% para 4,1 milhões de toneladas.

equilibrando a oferta e a procura, também o consumo aumentou 5,6%, para quatro milhões de toneladas, impulsionado pelas economias emergentes.

pelos quatro cantos do mundo, multiplicam-se as variedades e reinventam-se as formas de o saborear. puro, misturado, aromatizado. amarelo, vermelho ou azul. darjeeling, earl grey, oolong ou orange pekoe. com ou sem leite, doce ou salgado – no tibete, adiciona-se manteiga de iaque e sal –, mais ou menos envelhecido, o segredo está no paladar de quem o bebe. «não há o chá melhor do mundo», garante hermano mota. «o melhor é aquele que estamos habituados a tomar».

ana.serafim@sol.pt