João Tordo: ‘Tenho que escrever para sentir que valho alguma coisa’

Foi empregado de mesa em Londres, jornalista, escreveu guiões. Dá aulas de escrita criativa e toca contrabaixo. Mas, acima de tudo, João Tordo é escritor. O Prémio Saramago, em 2009, distinguiu-o como um dos melhores da sua geração. Agora acaba de lançar o seu sexto romance, O Ano Sabático, história negra sobre um dos temas…

o ano sabático versa sobre duas pessoas idênticas. como nasceu?

quando nasci éramos três gémeos: eu, a joana e outro idêntico a mim que morreu com seis horas. como sempre quis escrever um livro sobre o duplo achei que esta era uma história inusitada para o iniciar. mas o livro tem pouquíssimo de autobiográfico. é ficção. tinha a ideia há dois anos mas só comecei a escrever no ano passado, quando fiz uma residência literária no canadá. depois fui construindo a história.

hugo, o protagonista, é muito afectado pelo gémeo falecido. a si também o marca?

marca-me como dizerem-me que em 1974 houve uma revolução. só nasci em 1975, não tenho essa experiência directa. mas faz parte da minha história. tal como este acontecimento. se me marca pessoalmente? não. mas é uma boa história.

não sente então um fantasma atrás de si?

não. se acreditasse nisso tinha medo de sair à rua. como aquelas pessoas que vão à índia encontrar-se. a última coisa que queria era encontrar-me a mim próprio. deve ser assustador. a ficção serve para imaginarmos coisas que não podem acontecer.

escreve sobre dois músicos que compõem o mesmo tema. o que quis explorar?

toco contrabaixo, tenho ideia de como se pode construir uma composição. mas serem músicos não é o mais importante para a trama. podiam ter outra profissão. parte da história decorre em montreal, cidade de músicos com o maior festival de jazz do mundo. estive lá durante o festival, que me influenciou. encontrava contrabaixistas, pianistas, trompetistas…

e no tema do duplo?

o duplo é um tema que percorre a literatura toda: o oscar wilde e o retrato de dorian gray; o saramago tem o homem duplicado, o borges inúmeros contos.

não o preocupou ser já tão explorado?

não existem temas originais. o shakespeare escreveu sobre tudo, é difícil encontrar um tema novo. mas há novas formas de se abordar o tema. é aí que se distinguem os escritores.

tem medo que alguém escreva o ‘seu’ livro?

tenho o cuidado, quando estou a escrever, de não deixar passar informação. mas um livro escrito por mim dificilmente poderia ser imitado, tenho o meu próprio estilo. não me preocupa. não acho que ande aí muita gente a roubar ideias. se há um gajo do outro lado do mundo a escrever a mesma coisa… acho difícil de crer. se for verdade, a realidade supera a ficção.

hugo tem uma relação muito próxima com o seu contrabaixo. têm isso em comum?

sim, o meu também se chama nutella. mas tenho uma relação muito mais próxima com os livros. tenho um grupo de folk, loafing heroes. tocamos todos pela mesma razão: queremos fugir da nossa vida habitual. estou sempre a pensar em livros, a trabalhar com livros. ou estou a escrever ou a ensinar ou a traduzir. às vezes preciso de sair e fazer alguma coisa harmónica.

quando aprendeu a tocar?

aos 15 anos fui para o hot club mas faltava às aulas. queria era escrever. parei de tocar e há dois anos recomecei.

mateus, sobrinho de hugo, refere-se ao contrabaixo como o barco baixo. é ficção?

sim, é inventado. mas há duas figuras inspiradas pela realidade. a júlia, pela minha irmã joana, o mateus pelo meu sobrinho matias. mas a história é fictícia.

parte da acção decorre em montreal e não é a primeira vez que situa a acção dos seus livros fora. porquê essa opção?

viajo muito e penso sempre como seria colocar uma história onde vou. há um desenraizamento das personagens de que gosto. quanto mais frágeis forem, mais me interessam. são expostas e maleáveis. uma personagem que esteja a regressar ou a partir dá-me segurança de que é insegura. colocá-las noutro local é interessante.

na sua escrita narrador, autor e personagem confundem-se. gosta desse jogo?

é a única maneira que sei de contar histórias. não as consigo contar estando completamente desligado delas. é mais interessante escrever romances como se a minha vida estivesse ali. ou as minhas preocupações fundamentais e perguntas que me vou fazendo. neste caso é evidente: se tenho este gémeo idêntico, por que sobrevivi eu e não ele? por que está o joão no mundo e o hugo morreu? interessam-me essas questões. e são sempre pessoais. depois arranjo maneira de interessarem também aos outros. não quero escrever só para mim próprio.

hugo é alcoólico. dada a confusão entre autor e personagem, houve alguém que pensasse que você estava a passar por isso?

não. qualquer pessoa que esteja a atravessar uma fase como esta não é capaz de escrever um livro. escrevo um livro por ano. se tivesse problemas desses não conseguiria. estaria num centro de reabilitação ou caído nas esquinas. estar produtivo é sinal de que estou bem de cabeça.

quando começa a escrever sabe como vai acabar a história?

tenho uma ideia que vou alimentando e quando começo a escrever está quase madura. mas em termos de história talvez conheça as primeiras dez páginas. do resto não sei coisa nenhuma. essa é a aventura. se soubesse o que se vai passar não escrevia os livros. se fosse como aqueles escritores que escrevem a metro, com os capítulos arrumados e tudo definido, não teria graça nenhuma. escrevo sobre a aventura de escrever. nunca sei onde é que pára, quando pára, se resulta. é essa a aventura.

há um grande suspense durante a narrativa. quer deixar o leitor em suspenso?

é importante para mim também. sempre que termino um dia de trabalho quero sentir-me entusiasmado para o próximo. vou deixando que algumas perguntas fiquem para mais tarde, para que eu próprio me sinta desafiado a respondê-las. se o romance começar a ficar plano, desinteresso-me.

é um estilo raro na literatura portuguesa.

vai sendo menos. não falo dos fenómenos de vendas de livros escritos a metro, falo de bons livros. uma narrativa não são só palavras. a estrutura também é importante. faço o que gosto sem concessões, mas respeito o leitor. se estou a contar uma história, ele também tem que estar interessado.

nesse aspecto a sua literatura parece aproximar-se mais da anglo-saxónica ou espanhola que da portuguesa. sente isso?

sinto-me próximo dos novos autores portugueses. é uma boa geração. mas também dos meus heróis literários, que escreveram de uma maneira aparentemente simples, com preocupação na forma e estrutura. o melville não tem nada de complicado em termos de linguagem. o dom quixote é super divertido. os meus heróis literários são escritores que escreveram como se alguém os fosse ler. não tenho interesse em escrever como se escrevia no século xix nem nos anos 70. sou um autor dos anos 2000.

recebeu o prémio saramago em 2009. sente-se inserido na geração saramago?

sinto-me inserido por causa do prémio. conheço todos os prémios saramago, excepto o paulo josé miranda. são pessoas que admiro. mas os escritores da geração dos anos 50, 60 e 70 seriam mais próximos uns dos outros que nós. temos vidas diferentes e com esta profissionalização da carreira viajamos muito. vemo-nos nos encontros de escritores. tenho pena de que a boémia entre escritores tenha desaparecido. já não há partilha de ideias e não há zangas. tenho poucos amigos escritores.

não partilham uma corrente literária, como acontecia antigamente…

cardoso pires, lobo antunes e saramago não têm estilos iguais. essa geração não é tão parecida como nós pensamos. nesses tempos os escritores tinham a benesse de não ter de competir com a porcaria toda que se anda a vender. hoje parece que todos são escritores: da apresentadora de televisão ao gajo dos blogues, ao pasteleiro. é um disparate. eu não me vou meter na profissão dos outros. o excesso de produtividade editorial que marcou o fim dos anos 90 e estes últimos anos tem de parar.

e acha que vai parar?

tenho a certeza. as pessoas vão começar a distinguir entre quem é escritor e faz carreira e quem escreve por capricho. chegar aos escaparates e ver livros do saramago ao lado de livros de apresentadores de televisão é feio. os autores dos anos 50, 60 e 70 tinham menos exposição que nós, eram menos entrevistados, a literatura destinava-se a um pequeno nicho. mas esta democratização também foi negativa. as pessoas que lêem aqueles calhamaços tipo dan brown só vão ler aquilo. é bom que haja mais gente a ler mas temos que ter atenção ao quê.

nem todos os livros têm de ser literatura.

mas vendem-se no mesmo lugar. percebo que seja nas livrarias. mas que façam figura nos escaparates com os outros livros parece-me uma coisa quase obscena.

editou o livro dos homens sem luz em 2004. antes ganhou o prémio dos jovens criadores. quando começou a escrever?

comecei esse romance em 2002. mas já tinha escrito contos, peças de teatro… mas nunca fiz nada com elas. em 2002 cheguei aos eua para fazer um curso de escrita criativa e senti que estava na altura.

foi para lá para escrever?

sim. e para prolongar a minha estadia fora de portugal. não queria voltar antes de sentir que estava formado como pessoa. aos 23 anos fui para londres fazer um mestrado em jornalismo. ia ficar um ano, fiquei quatro. fui, sobretudo empregado de mesa, aprendi imenso acerca das pessoas.

voltou por ter publicado o livro?

sim. senti-me um bocado apátrida, estava fora há seis anos, não gostava de viver aqui, queria ver outros sítios. depois as coisas foram-se compondo e percebi que a minha vida são os livros. quando acabei o primeiro só pensava em escrever o segundo. tornou-se um vício. tenho que o fazer para sentir que valho alguma coisa. o meu público está cá, não fazia sentido estar longe. agora gosto de viver em lisboa. é encantadora.

trabalhou como jornalista. onde?

passei pelos jornais universitários e, em 1997, fui para o correio da manhã. em 1998 fui para londres e escrevia reportagens para vários sítios. nunca fui um jornalista excepcional. nem nunca iria ser.

mas ponderou uma carreira no jornalismo?

sim. ia ser jornalista e aos 40 escreveria livros. mas não foi assim. quando comecei a ser jornalista só queria fazer reportagens. que tinham o pendor de parecer ficção. em londres fiz uma para o independente, enviei-a para o francisco camacho e para o pedro boucherie mendes, que eram os editores. não a publicaram. acharam que tinha entrado no domínio da ficção.

e tinha?

tinha. é perigoso quando um jornalista se aventura e começa a escrever coisas que podem ou não ser verdadeiras. o estranho é que não me dei conta de que estava a entrar num território que não era exactamente factual. incomodou-me imenso. percebi que talvez fosse um ficcionista falhado que tinha decidido ser jornalista. ou um jornalista falhado que deveria ter sido ficcionista. depois descobri que era ficcionista e não era jornalista nenhum.

hoje vive apenas dos livros?

não, faço um bocado tudo para conseguir sobreviver. escrevo contos, faço workshops e traduções. há pessoas que têm a ideia de que por estarmos expostos, termos os livros aí fora, aparecermos no jornal e na televisão, temos imenso dinheiro, que assinamos contratos milionários. não. assinamos contratos que são tudo menos milionários. vende-se pouco em portugal. ganhamos 10% por livro vendido. nós, os escritores, pelo menos os da minha geração, somos tudo menos ricos. e temos que fazer muita coisa para sobreviver.

e os festivais literários?

não conseguia fazer isso em série. conheço escritores que passam a vida no aeroporto. gosto de ter o meu tempo pessoal e para escrever. preciso de estar com os meus amigos. nos próximos meses vou viajar muito, devido ao livro novo. mas não quero passar a vida em conferências e festivais literários.

foi difícil crescer como filho do fernando tordo?

não. só vivi com o meu pai até aos quatro anos. depois os meus pais separam-se. nunca tive problemas com isso. e sempre soube que ia fazer uma coisa que não tinha nada a ver com ele. a escrita é a minha vida e o meu pai é músico. são duas artes. mas não estão ligadas.

não foi influenciado pelo seu pai?

o meu pai não estava presente. a escolha foi minha. quando se diz que cresci num ambiente artístico não é verdade. só até aos quatro anos. depois fui viver com a minha mãe. a minha forma de expressão partiu inteiramente de mim.

e ser sempre referido como ‘filho de’?

talvez me incomodasse se vivesse à sombra do meu pai. mas não tenho nada a ver com o que o meu pai faz. escrevo romances. e as pessoas que os lêem percebem que não tenho sucesso – se é que se pode chamar a isto sucesso – por causa do meu pai. vendo livros porque, acho, sou um bom escritor.

pediu para não comprarem o seu livro, hotel memória, editado pela quidnovi. porquê?

rescindi contrato com a editora há uns dois anos porque tive vários problemas de pagamento. e no outro dia fui à fnac e percebi que o hotel memória estava no top a ser vendido ao desbarato. não é o preço do livro que me faz confusão, mas que eles tenham a falta de decoro de, depois de eu ter rescindido contrato e de me terem ficado a dever dinheiro, aproveitarem o facto de eu lançar um novo livro para pegarem no stock e vender ao desbarato. acho uma falta de respeito, sobretudo pelos direitos de autor. por isso pedi aos meus leitores para não comprarem esta edição um dia será de novo reeditado, tenho livro novo e outros para trás. há muito por onde escolher.

rita.s.freire@sol.pt