‘Rezamos com as mãos e o corpo’

A música ouve-se ainda antes de se atravessar as portas da Igreja de Santa Isabel, em Lisboa. É terça-feira à noite e há dezenas de braços erguidos no ar. Todos cantam: «Vem Espírito Santo, Vem!». Mal a música termina explodem numa salva de palmas que contagia o altar, onde um padre e sete católicos de…

esta não é uma missa tradicional, mas um encontro de oração dos membros do renovamento carismático, um movimento da igreja católica que tem cada vez mais adeptos em portugal. chegou ao país em 1974 e hoje terá dezenas de milhares de seguidores de norte a sul. no mundo, serão cerca de 110 milhões.

a cada reunião há sempre uma cara nova, garantem os fiéis que nesta noite gelada e de chuva enchem quase metade da igreja lisboeta. quando há missa carismática é que o espaço «fica repleto, há gente mesmo até à porta». reúnem-se ali mais de 300 pessoas.

as palmas põem fim a mais de hora e meia de oração, sempre intercalada por cânticos. os carismáticos levam à letra as palavras de santo agostinho, que dizia que «cantar é rezar duas vezes». têm um coro durante a oração e cantam sempre que termina cada oração feita de improviso por uma das oito pessoas sentadas lado a lado nas cadeiras que enchem o altar.

há salmos, hinos tradicionais em latim e uma língua desconhecida e incompreensível. «rezamos em línguas, que é um dos carismas do espírito santo», vai explicando joão, 65 anos, um dos membros do movimento. «é um dom que se recebe, deixamo-nos ir e os sons saem sem esforço. mas nem todos os carismáticos o conseguem fazer e por isso cada um canta como pode».

a oração continua depois de mais um cântico, sempre ao ritmo do improviso. o microfone passa para a mão de uma das seis mulheres no altar. nesta noite, todas as orações se voltam para o vaticano, onde o conclave está ainda reunido. só no dia seguinte será escolhido o cardeal bergoglio como o sucessor de bento xvi. por isso, falar do «vazio na cadeira de pedro» é incontornável. na oração pede-se que os cardeais reunidos «façam a vontade de deus». reza-se por joão paulo ii. só depois por bento xvi, o papa emérito, recolhido em castel gandolfo desde que resignou.

acolher os católicos para combater o afastamento

num país onde o número de católicos está a diminuir e a participação nas missas de domingo é cada vez mais reduzida, sobretudo nas grandes cidades, há movimentos na igreja que têm casa cheia. além dos carismáticos, também os focolares ou o movimento de schoenstatt – que chegaram a portugal na década de 60 e 70 do século xx pela mão de padres – têm cada vez mais adeptos. reúnem-se para rezar, em encontros onde também participam jovens e até crianças, ou em peregrinações.

numa das capelas do movimento de nossa senhora de schoenstatt em lisboa, no restelo, juntam-se todos os domingos dezenas e dezenas de famílias, com muitas crianças e jovens. «são missas leves, onde os padres são jovens e falam sobre a forma de ultrapassar os problemas e melhorar o dia-a-dia», conta catarina, de 40 anos. «sentimo-nos bem quando saíamos dali. saímos alegres».

foi isso que ana, de 55 anos, divorciada e afastada da igreja há vários anos, descobriu nos carismáticos. «reencontrei aqui o jesus da minha infância», explica. foi o acolhimento que aqui recebeu que a fez mudar de vida, deixando para trás o álcool. «comecei por vir sozinha todas as terças-feiras. rezava muito e iniciei um caminho de cura que me tornou uma mulher nova». ali, tem sempre vontade de regressar.

fugia do seminário para a oração

o padre joão luís paixão também sai «destes encontros sempre a querer mais». vem de cacilhas, na outra margem do tejo, para santa isabel, onde partilha o altar com outros fiéis. «para mim o cristianismo é encontro. aqui há um encontro com deus, não só afectivo mas efectivo», diz o sacerdote, que ainda antes de ser ordenado padre já era carismático. «fugia do seminário para poder participar na oração».

para este pároco muitos católicos vivem a missa como mais um ritual, o que ajuda a explicar o seu progressivo afastamento das celebrações tradicionais. «as pessoas vão à missa como vão ao café, num ritual, e saem com cara de enterro», lamenta. «aqui as pessoas libertam-se, deixam-se navegar. rezamos com as mãos, rezamos com o corpo e extravasamos a nossa alegria. isso faz muita falta nos dias de hoje».

os braços estão constantemente no ar e muitos rezam de mãos abertas, como é vulgar entre os padres. a forma como todos participam faz o tempo passar a correr, garante joão. «vamo-nos libertando aos poucos. mas lembro-me que quando comecei a participar nos encontros, o tempo passava e nem me lembrava de fumar».

as missas carismáticas podem demorar duas horas, porque apesar de seguirem a liturgia tradicional há momentos de oração mais prolongados e a música está sempre presente. e todos os meses há encontros de oração que não duram menos de hora e meia. ninguém parece importar-se. «as pessoas querem libertar-se e aqui a entrega é grande», diz o padre joão luís.

nessa noite maria emília é o centro das atenções. faz anos e tem direito a uma oração especial. de joelhos no centro do altar, o padre joão e os outros carismáticos rodeiam-na e rezam com as mãos sobre a sua cabeça.

sem fundador nem hierarquia

o renovamento carismático que nasceu na universidade católica de duquesne nos eua, no final da década de 60, defende uma renovação da espiritualidade ligada ao espírito santo. «este não é um movimento de ideias teológicas ou de concepções sobre a vida espiritual. é um fenómeno místico: as pessoas apaixonam-se por deus», explica mário pinto, professor de direito da universidade católica, que pertence aos carismáticos há 24 anos. «não há um fundador, não há regras. o que há é uma enorme entrega».

o movimento chegou a portugal no mesmo ano da revolução de 25 de abril, pela mão do padre lapa, da comunidade espiritana da estrela, em lisboa. o padre começou por formar um grupo de oração, que se encontrava semanalmente para rezar à porta fechada. a primeira missa aberta aconteceria no final de 1974 e reuniu 120 pessoas. na celebração seguinte, em janeiro, eram já 200 e o movimento nunca mais parou de crescer.

por todo o país se formaram grupos de oração, que podem rezar em conjunto, mesmo sem a presença de padres. os grupos reúnem-se em paróquias onde os padres são carismáticos ou permitem que as portas se abram a estes católicos, como é o caso da paróquia de santa isabel.

o vaticano viria a reconhecer o movimento já na década de 1990, dando-lhe estatutos próprios, mas os carismáticos há muito que se multiplicavam pelo mundo.

efusão do espírito

todos os anos, durante a quaresma, realizam-se em lisboa seminários carismáticos, que duram várias semanas e culminam com este acto, onde se renovam os dons do baptismo. «a maioria das pessoas foi baptizada em criança e não tem memória dessa experiência», explica mário pinto. «é uma renovação dos dons do baptismo».

há cerca de três semanas, um grupo de 40 crentes recebeu a infusão do espírito. é nesta cerimónia que os carismáticos acreditam que o espírito santo se revela, dando a cada um dons, os chamados carismas, que devem ser usados para o bem da comunidade. «o que acontece é muito semelhante ao descrito nos actos dos apóstolos durante os baptismos dos primeiros cristãos. é um momento único e inesquecível», remata mário pinto.

reconquistar os que se afastam

a existência destes movimentos católicos – com vida própria dentro e fora das paróquias – pode ajudar a igreja a recuperar terreno, agarrando uma franja de católicos que se tem afastado das práticas da igreja. sobretudo nas zonas urbanas, onde a percentagem dos que se afirmam católicos é mais reduzida (26%).

o coordenador do último retrato sobre os fieis no país – identidades religiosas em portugal, divulgado no ano passado pela conferência episcopal – lembra que «os estudos mais recentes demonstram que há muitos católicos que vão irregularmente à missa e têm uma vivência pessoal da sua fé».

para alfredo teixeira, coordenador do centro de estudos e culturas da universidade católica, «muitas vezes estas pessoas não vêem reconhecida a sua diversidade e iniciam um caminho de afastamento». perante esta realidade, defende, a igreja tem duas opções: «ou finge que não vê estes fiéis que continuam a afastar-se ou então encontra-lhes um lugar, acolhendo-as como precisam».

joana.f.costa@sol.pt

texto publicado na revista tabu de 22 de março