Gana: Todos os dias há uma família que entrega um filho por 30 euros

Todos os dias no Gana há um pai ou uma mãe que recebe 30 euros por entregar o filho a um pescador do Lago Volta. A partir desse momento, os laços familiares desaparecem e a criança passa a ser tratada como mercadoria.

nesse mesmo dia, vai para o lago – o maior lago artificial do mundo – e apanha a primeira de muitas cestas de peixe. as semanas vão-se sucedendo e essa criança não irá à escola, possuirá como único pertence uma t-shirt velha e terá pesadelos com os crocodilos que com ela dividem o rio. caso tenha nascido numa quinta-feira, chamar-se-á kobbi; se tiver nascido a uma sexta será koffi.

se, apesar de todas as dificuldades, conseguir sobreviver e chegar à idade adulta, acabará por tornar-se ela própria esclavagista.

esta história foi contada ao mundo em 2007 pelo new york times e desde esse dia ong de todo o mundo rumaram ao gana para salvarem os milhares de crianças aprisionadas pelos pescadores do lago. na altura, duas mulheres de dois continentes diferentes foram também tocadas pela história e sentiram o apelo humanista de resgatar o maior número possível de miúdos.

a primeira foi pam cope, uma cabeleireira do texas que perdeu um filho adolescente, de 16 anos, com uma síncope cardíaca. nesse dia jurou defender as crianças de todo o mundo e abriu dois orfanatos no vietname e no camboja, um para meninos violados, outro para crianças maltratadas. fundaria um terceiro no gana, dedicado às crianças escravas.

foi um dos colaboradores de pam que acolheu alexandra borges, quando chegou a vez de a jornalista da tvi fazer a reportagem sobre os meninos do gana, em 2007. no dia em que conheceu os pescadores, alexandra conseguiu libertar três, mas não esquece o primeiro, alex quetey. «quero chamar-me alex, como a mulher branca», terá respondido quando chegou ao orfanato de pam.

«o quetey foi o primeiro miúdo com quem cruzei o olhar», conta a jornalista. «ele estava tão doente que eu disse logo: ‘vamos levá-lo já’. o resgatador bem me disse que era um processo de mentalização dos pescadores até que eles libertem os miúdos, o que leva um certo tempo. mas eu vi que aquele miúdo estava com uma anemia imensa, tinha lombrigas, piolhos e estava todo cortado. soube que o ia levar quer o pescador quisesse quer não quisesse», recorda. e acrescenta: «é fácil detectar estes miúdos porque os filhos dos pescadores vão à escola e por isso não estão no lago. quando são mais crescidos, os filhos dos pescadores têm chinelos e estas crianças não. têm apenas uma t-shirt e mais nada. é tão doloroso quando os resgatamos e dizemos ‘vai buscar as tuas coisas’ e eles vêm com a t-shirt toda rasgada dentro de um saco de plástico…».

a portuguesa levou alex, foi com ele ao médico, deu-lhe uma refeição digna desse nome e a primeira t-shirt nova da vida dele. além disso, ofereceu-lhe um relógio. «disse-lhe que aquilo representava o tempo e que regressaria».

voltou com 100 mil euros, resultado das campanhas de sensibilização que se materializaram num livro e num cd, e resgatou mais dez crianças. pam e a sua equipa hoje albergam 95 crianças resgatadas do lago. com o apoio da ipss filhos do coração, de alexandra borges, dão-lhes cuidados de saúde, educação e uma nova vida. «nós pomos estes miúdos a estudar e são sempre os melhores alunos. eles percebem que é através da educação que chegam à liberdade. através da educação vão chegar mais além e um deles vai ser presidente e acabar com a escravatura infantil». entretanto, conta alexandra, pam fundou o novo orfanato «na cidade onde estão as universidades».

«ela está a reunir bolsas de estudo na américa para que um que queira ser médico possa ir para a melhor universidade. a vontade de mudança destes miúdos é muito grande e sei que lhe estamos a dar uma educação privilegiada. com os professores americanos que têm, falam melhor inglês do que qualquer miúdo do ensino oficial. além de que a pam organiza frequentemente a semana da arte, onde leva pintores, cantores e fotógrafos ao orfanato».

para a ajudar, alexandra promove, até dia 22, um espectáculo no teatro tivoli (lisboa), cujas receitas revertem 100% a favor dos meninos do gana. filhos do coração trata-se de um musical inspirado no livro homónimo lançado a 1 de junho de 2012, dia da criança. «a única coisa que eu disse à encenadora foi que queria que as nossas crianças valorizassem o que têm, porque as do gana não têm nada e valorizam as coisas mais simples». alexandra lembra que cada criança no orfanato ganês custa mil euros por ano. «são três playstation…».

patricia.cintra@sol.pt