Francisco José Viegas: ‘É preciso que a poeira levante’

Dois corpos russos e uma ‘menina bem’ desaparecida dão o mote para O Coleccionador de Erva, a nova investigação de Jaime Ramos assinada por Francisco José Viegas. O livro sai após 18 meses como secretário de Estado da Cultura e após dois AVC.

como nasceu o coleccionador de erva?

é a história de um homem que coleccionava erva, que eu e o josé eduardo agualusa conhecemos no brasil. ficámos anos a discutir quem a iria usar. acabei por ser eu. e interessava-me prolongar a vida do inspector jaime ramos e aumentar a galáxia das personagens que o rodeavam. é mais uma história de personagens que uma investigação densa.

desde 2009 que não escrevia sobre jaime ramos. estava com saudades?

estava. não é um alter-ego mas é uma companhia que tenho há anos. e que me ultrapassou. na alemanha aparece o meu nome muito pequeno e jaime ramos em grande. em itália também. num lançamento em roma, em entrevista à rai, o jornalista perguntava-me: ‘são seis horas, o que prepararia jaime ramos para jantar?’ disse: ‘bom, jaime ramos não sei, mas eu….’. e ele: ‘não, quero saber de jaime ramos!’.

há dois mortos russos e uma jovem desaparecida de boas famílias. o que lhe interessou nestes dois universos?

a imigração, um factor de progresso, que nos confronta com o desconhecido e evita que o país fique tão pálido como está. durante o fluxo de imigração tínhamos uma pluralidade de culturas. podíamos ir a um restaurante italiano com o cozinheiro ucraniano e o empregado de mesa brasileiro. deu-nos abertura. não somos abertos, somos desconfiados, temos alguma xenofobia, racismo. e a béni é a representante de um grupo que me interessa: as famílias do antigo regime que se reproduzem apesar das revoluções.

os imigrantes estão a ir-se embora. porquê escrever sobre isso agora?

justamente para chamar a atenção. durante muito tempo maltratámos os imigrantes. agora estamos num ciclo inverso. somos nós que vamos viver para fora. mas sempre fomos emigrantes, o nosso adn está ligado à diáspora.

o que quis explorar no tema das famílias tradicionais do porto?

a endogamia de classe que, em portugal, é evidente. quando vemos a estrutura da propriedade e das grandes empresas, vemos que os apelidos se repetem. não temos que cortar o pescoço às pessoas. mas, apesar da democratização da vida política e cultural, não há uma democratização da vida económica.

refere a promiscuidade entre as famílias ricas, a política, a banca…

é a endogamia pura. acabar com isso implicaria uma alteração da estrutura da propriedade e uma democratização da vida económica. é um passo necessário mas muito complexo.

o isaltino assume a rebeldia e a olívia um grande peso na narrativa. está a preparar a sucessão?

não, o jaime ramos vai durar, tenho mais histórias para ele. mas quero dar mais protagonismo à olívia, porque cada vez mais as mulheres assumem maior lugar de destaque na investigação criminal, e ao isaltino. o jaime ramos é um burguês numa sociedade burguesa. o isaltino é um filho do povo que, de repente, chega às páginas de um romance.

quando foi escrito o livro?

metade antes de ter ido para a ajuda, a outra depois de ter saído. a escrita exige um compromisso diário, muitas madrugadas. enquanto estive na ajuda não tinha tempo para fazer tudo, quanto mais dedicar-me ao romance.

voltou à quetzal e à ler. já estava em funções enquanto escrevia?

as pessoas precisam de um emprego. quando saí [da secretaria de estado da cultura] voltei a procurar trabalho. não quis nenhuma ligação à política, nem às suas formas de ganhar dinheiro. voltei a trabalhar como uma pessoa normal. tive um período de repouso por motivos de saúde, e aí estive realmente afastado, a dormir durante algumas semanas. a seguir voltei a trabalhar.

sem medo, como o jaime ramos?

sem medo. há uma fase em que, quando uma pessoa está mais submetida a pressão, os medos vêm todos. mas já fiz tanta coisa na vida, fui cozinheiro, professor, que já nada me mete medo.

perguntava quanto à saúde, também jaime ramos passou um período no hospital.

é curioso, porque em o mar em casablanca ele atravessa essa crise e nunca imaginei que eu próprio, depois, tivesse uma coisa semelhante. com a diferença de que ele teve um avc e eu tive dois.

não quer falar dos meses enquanto secretário de estado. porquê?

é cedo. não é uma coisa que eu queira esquecer. mas devo um certo recato em relação a essa matéria. o que não me impede de ser livre, ter as minhas opiniões e escrever as minhas observações.

imaginou que uma observação como a que pôs no seu blogue sobre as facturas pudesse ter tal repercussão?

não. acho que foi uma bolha que se transformou em matéria explosiva devido a uma onda moralista: que horror, ele disse um palavrão. era uma posição que tinha antes de ir para o governo e que mantive.

de saúde está restabelecido?

nunca se fica completamente restabelecido. há sempre sequelas. e fica-se com uma forma diferente de encarar a vida. encaro tudo isso com boa disposição.

neste livro jaime ramos faz um arroz de sardinhas sem sal. vai começar a ser mais saudável nos cozinhados que apresenta?

a cozinha boa é sempre saudável. se bem que tem a ver com a nossa ideia de que temos que nos punir permanentemente em relação à cozinha e à vida. mas mesmo que fizesse uma dieta rigorosa escreveria sempre sobre cozinha como eu a sinto. não haverá grande alteração nessa matéria.

que medida julga ter marcado, pela positiva, a sua passagem pelo governo?

há duas coisas que me interessaram sempre: valorizar o trabalho sobre o património cultural e a lei do cinema. por um lado o cinema substitui para o grande público aquilo que a literatura era no século xix e, por outro, o cinema português é o grande transporte da imagem de portugal e da língua portuguesa lá para fora.

como vê o estado da cultura portuguesa a dez anos?

recuso-me a fazer previsões. se não é possível fazer previsões na economia, em coisas como arrecadação fiscal e taxa de desemprego, imagine-se na cultura, onde as coisas estão a mudar a uma velocidade alucinante. agora se me pergunta quais serão os tons da cultura portuguesa daqui a dez anos, acho que somos capazes de ter alguma surpresa boa, tanto na literatura como no cinema estamos em crescendo. estão a aparecer valores muito interessantes. mas tenho medo das generalizações. uma das palavras que mais gosto da língua portuguesa é poeira. precisamos, para já, que ela levante. que ande por aí.

imagina jaime ramos no grande ecrã?

sempre o vi como uma mistura de ben gazzara com robert duvall, com aquele ar desfeito pela idade. há três guiões já concluídos de jaime ramos, dois em portugal e um no brasil. estou à espera de ver qual o resultado desse trabalho. e gostava de uma série de televisão com o jaime ramos.

ao estilo mandrake?

por exemplo. ainda por cima ele tem uma relação com o mandrake no crime capital. precisava de um advogado criminalista brasileiro e fui buscar o mandrake aos livros do rubem fonseca. acho que o resultado foi engraçado. tem aquela frase em ele diz: ‘ah, um dia eu gostava de ir na amazónia’. e o jaime ramos responde: ‘eu sei, eu sei’. ‘como você sabe’? ‘eu li’.

rita.s.freire@sol.pt