Roma revisitada

Durante quinze anos, entre 1987 e 2002, vinha aqui uma média de quatro ou cinco vezes por ano, ficando no mesmo hotel, o Sant’Anna, no Borgo Pio, um edifício que, como todas as casas da rua, tem à volta de quinhentos anos.

comove pensar que pisamos um chão que é pisado e habitado há quase três mil anos sem interrupção. a possibilidade desta emoção é um dos encantos da velha europa – história, histórias, memórias.

roma tem esse e outros. de noite, o caminho para a cidade deixa ver os pinheiros mansos, os ciprestes, os muros das quintas e casas que, de dia, são ocres, ou o cor-de-rosa velho daqui; depois, é a entrada pela via aurélia uma daquelas estradas militares que a república construiu no princípio do império (século iii a.c.) – e a descida para a urbs junto aos bastiões desenhados por miguel ângelo. depois, a praça risorgimento e os rioni ao lado de s. pedro.

de manhã, o borgo pio está cheio de sol e a rua e as esplanadas estão já cheias de gente – padres, freiras, turistas. apanho um táxi para o cruzamento do corso com a via dei condotti, que subo até à praça de espanha. aqui passa a toda a hora aquela fauna única das fitas do totó e do sica; do fellini – velhos galãs de uma elegância propositadamente descuidada; populares iguais aos figurantes medievais de pasolini; e as mulheres mais lindas do mundo, tirando três ou quatro que conheço e sei que neste sábado estão noutras paragens.

a beleza disto tudo resiste às hostes invasoras de compradores ávidos e predadores vindos das potências antigas e emergentes: casais americanos e alemães ricos, jovens empresários chineses gordos e prósperos e outros oriundos das economias emergentes. pensando na confusão da vida política italiana, com governos de gestão, sem horizonte de estabilidade e olhando esta doçura de viver, só podemos concluir que o governo é capaz mesmo de não ser tão necessário como isso. e que maquiavel, hobbes e hegel valem menos que um banqueiro anarquista!

almoço no toto, olhando a via delle carrozze e uma repetição em vaivém de espécimes romanos. compro livros, um dos desenhos oníricos do fellini, uma biografia do totó e fascismo di pietra de emilio gentile, sobre a roma de mussolini.

à tarde, compras mais laicas burguesas. e, ao fim do dia, vou encontrar-me com um velho amigo, que agora é bispo auxiliar de roma. vou ter com ele a uma paróquia de monteverde, s. giulio, onde há missa de celebração do patrono: uma igreja nova, periférica, cheia, uma missa longa como as da áfrica lusófona.

é também de áfrica que falamos, ao jantar, numa trattoria modesta, com bela comida romana e vinho do veneto. e comparamos a igreja da nossa infância e a de agora: sem pessimismo, sem escândalo, filosofando com alguma nostalgia mas dizendo para nós e um para o outro – «que ele lá sabe».

deus queira que, além de saber, ele se ocupe. de nós todos.