Morte de uma senhora

Margaret Thatcher morreu a 8 de Abril e teve a 17 um funeral que a Inglaterra, sempre mestra no modo de valorizar a substância através da forma, reserva para os seus líderes e heróis.

vira poucos dias antes the iron lady, o filme de phyllida lloyd, que apesar de uma excelente interpretação de meryl streep não se salva de ser um olhar distorcido e mal intencionado sobre a vida e obra da ‘dama de ferro’ que aparece numa velhice senil, exposta na intimidade caseira descuidada, que dá e dará sempre cabo de qualquer mulher.

thatcher foi uma heroína para uma direita órfã de líderes e ainda mais de ideias. fez parte daquele terceto – joão paulo ii, ronald reagan e ela mesma – que, no último quartel do século xx, restaurou a força de um ocidente considerada em decadência e garantiu a vitória sobre o comunismo soviético. foi este fim da guerra fria que lançou as bases do século xxi. o que é uma grande ironia dada a manifesta decadência do ocidente e sobretudo da europa.

era uma mulher de convicções, uma lutadora. feita à própria custa, ‘a pulso’, esta filha de um merceeiro foi eleita em 1974 líder do partido dos lordes, dos pares, dos privilegiados da metade tradicional da sociedade mais classista e snob da europa.

mas nas suas convicções havia uma coisa que não tinha nada a ver com o modo dos outsiders convertidos às regras da classe dominante: havia uma ideia da inglaterra e do mundo. uma ideia, mistura de várias coisas – patriotismo ‘inglês’, liberdade económica, anticomunismo activo, mas sobretudo um estilo. ela tinha um modo de fazer política, mais como uma batalha com barragem de artilharia e assalto frontal, que como uma arte de barganha, negociação, assédio, rendição.

foi o seu patriotismo inglês que a levou a quebrar a solidariedade ocidental, por causa de umas ilhotas perdidas no atlântico sul, com grande aflição de alexander haig e do state department. como convenceu ronald reagan a não apoiar as guerrilhas de moçambique como apoiava as de angola, pois londres tinha a sua política na região.

com a crença na mobilidade social se houver liberdade de pensar e criar economicamente; e sobretudo o repúdio, no estilo e na acção, das meias tintas, do centro de conveniência, de tudo o que fosse ou aparecesse como fraqueza.

o seu lado duro, bem revelado na guerra das falkland, no choque com os sindicatos, no confronto de vontades com os grevistas da fome do ira, deu lugar à acusação mais severa que lhe podem fazer: ter deixado de fora, a também tão inglesa quality of mercy, do discurso de shylock no mercador de veneza, a compaixão dos antigos e modernos que equivale, nos novos tempos à solidariedade entre os compatriotas e à comunidade com todos os outros homens. mas não seria isso por se achar a guardiã da razão de estado, em tempos e escolhas decisivas?