Django e a causa perdida

Quando Howard Zinn, autor e historiador engagé, publicou A People’s History of the United States (1980), pretendendo reescrever a história da nação do ponto de vista dos vencidos, dos oprimidos, dos ofendidos, não deixou de denunciar o esmagamento dos Estados confederados e a ambiguidade do Governo da União na defesa dos direitos dos negros, revelando…

o livro vinha na linha da desconstrução dos mitos fundacionais da narrativa histórica oficial e reflectia o espírito dos movimentos anticoloniais, pacifistas e neutralistas no ocidente, mas como o inimigo principal era agora o capitalismo industrial americano, o sul, apesar do passado esclavagista e da segregação dos afro-americanos, conservava o prestígio difuso das causas perdidas e das culturas destruídas pelo centro poderoso.

este sul, a confederação, a causa perdida da guerra civil, gozara sempre de especial estatuto na literatura e no cinema. na primeira metade do séc. xx, dois ícones cinematográficos, the birth of a nation de d. w. griffith e gone with the wind de victor fleming, tinham-no retratado romântico, aristocrático, paternalista, nostálgico, perdido, destruído pela brutalidade e modernidade dos comboios e dos canhões de sherman. com a vitória da união e a libertação dos negros, chegara a exploração dos carpetbaggers do norte e a lógica da auto-defesa explicaria até o ku klux klan, que griffith quase chega a idealizar. também faulkner e erskine caldwell, nas suas narrativas críticas, deixariam subentendida, senão uma justificação, uma explicação histórica da incompreendida realidade social das sociedades e das gentes do sul. tanto os vencedores como os vencidos acabavam por rever-se no tenso aperto de mão de lee e grant em appomattox.

tudo isto prende django unchained à tradição que, aparentemente, vem quebrar. tarantino cria uma ética-estética de causas ora claras ora subtis, num estilo de opereta rocambolesca que é, em si mesmo, a mensagem ou parte significativa da mensagem. django, o escravo alforriado, tanto é siegfried como um pistoleiro do faroeste ou uma personagem de um western spaghetti, tanto é rambo, o soldado perdido, como um negro de gang urbano em expedição vingadora. e como nos ‘filmes americanos’ tudo caminha, de cliché em cliché, em violenta e arrasadora cavalgada para a solução final.

django é libertado uns anos antes da guerra civil e da derrota do sul por um cirurgião-dentista-caçador de prémios alemão, o dr. king schultz. no curso das suas incursões profissionais, schultz decide juntar o útil ao justo (no rasto de cícero) e ajudar o servo que utilitariamente libertara a encontrar e a salvar a sua bem amada brunilde, vendida a um cruel esclavagista do sul profundo. é mais uma das extraordinárias jornadas épicas a que tarentino nos habituou ao longo de 15 anos de cinema, que, como a marcha de sherman para sul, leva tudo à frente e não deixa nada de pé.