Nuno Camarneiro: A morte é um elefante na sala

Quando Nuno Camarneiro recebeu o telefonema, mal coube em si de contente. Manuel Alegre anunciava-lhe que tinha ganho o Prémio Leya, no valor de 100 mil euros, pelo romance Debaixo de Algum Céu (ed. Dom Quixote), entregue ao autor na passada quarta-feira por Cavaco Silva.

nuno camarneiro, engenheiro físico nuclear, não era um estreante nas letras. debaixo de algum céu é o seu segundo romance. o autor estreou-se com no meu peito não cabem pássaros, editado pela leya, em 2011. e notou logo os efeitos que a distinção pode ter. «maior exposição pública, mais livros vendidos. logo que foi anunciado o prémio, esgotou-se a primeira edição do meu primeiro livro. vendi tanto nas semanas a seguir ao prémio quanto tinha vendido no ano e meio antes».

nascido em 1977, na figueira da foz, nuno camarneiro nunca pensou que o seu futuro passasse pelas letras. bem pelo contrário. desde pequeno que se imaginava cientista, sonho que perseguiu licenciando-se em engenharia física pela universidade de coimbra. canudo na mão, fez as malas e rumou à suíça. chegou em pleno inverno, para integrar o cern (a organização europeia para a investigação nuclear). foi na solidão das ruas nevadas que o impulso para pegar numa caneta surgiu. «sempre li muito, desde muito novo que tenho uma relação próxima com a literatura. e como acontece com quem ouve muita música, ou quem vai muito ao teatro, há uma pergunta que vai crescendo: será que eu também seria capaz? no cern não conhecia ninguém. e nesse momento socorri-me da escrita para registar e resolver uma série de coisas que sentia».

nada que o tornasse num bicho raro. quantos cientistas, afinal, não o fizeram antes dele? antónio gedeão, o poeta, era o pseudónimo de rómulo de carvalho, o professor de física; primo levi, o autor de se isto é um homem, ganhava a vida como cientista químico; o moçambicano mia couto, um dos mais populares autores da língua portuguesa, continua a trabalhar como biólogo.

a escrita começou por cumprir a função inicial, de um diálogo consigo mesmo. depois foi ganhando terreno e autonomizando-se. até que sentiu que estava na hora de publicar. e enviou o material a maria do rosário pedreira, a editora que tinha conhecido anos antes, em florença, onde camarneiro viveu enquanto se doutorou em ciência aplicada ao património cultural. uma derivação no seu percurso que o levou a, em colaboração com historiadores de arte, utilizar o conhecimento da química e da física para estudar obras antiquíssimas. teve em mãos e trabalhou com obras como desenhos de leonardo da vinci, manuscritos do galileu galilei ou um quadro de antonello da messina.

ao voltar para portugal, onde integrou a universidade de aveiro como investigador, editou no meu peito não cabem pássaros, onde juntou três histórias independentes. e começou a escrever este segundo livro, debaixo de algum céu, uma narrativa que decorre numa pequena vila de praia, inspirada nas que circundam a sua terra, mas que podia ser qualquer outra praia portuguesa abandonada no inverno.

um prédio que é portugal

vários inquilinos partilham um prédio de três andares, vidas que inevitavelmente se cruzam a pretexto de uma tempestade: um padre, um inventor de autómatos com inteligência artificial, um casal com dois filhos, um jovem casal com um bebé recém-nascido, uma viúva, um reformado, as recordações de quem já partiu. «gosto dos filmes em que a acção se passa toda numa sala ou num prédio. o delicatessen, que é genial, é todo passado dentro de um prédio. o 12 angry men, sobre um júri que delibera uma sentença de morte, é todo passado dentro de uma sala. essas histórias dentro de um ambiente contido, quase claustrofóbico, agradam-me. e achei que era interessante, um exercício de estilo, como escrever um policial. tem qualquer coisa de livro de género. e quis, ao mesmo tempo, fugir a isso, fazendo uma coisa diferente e nova».

decidida que estava a localização da narrativa, foi hora de imaginar os seus habitantes que foram surgindo e impondo-se. «à medida que o fui povoando, umas personagens foram pedindo outras. tentei que o prédio fosse rico e exemplificativo de vários tipos sociais». e o resultado é um espelho de portugal. um prédio onde cabe um país inteiro. «quase todos os livros são uma alegoria. este tem muito do que é a sociedade portuguesa. pelas profissões das pessoas, pelos problemas que têm nas suas vidas, pela solidão que muitas delas têm, pela dificuldade em gerir as suas vidas, tanto profissionais como sentimentais. isso é tudo o nosso tempo».

com uma narrativa que decorre entre o natal e o ano novo, todas estas personagens atravessam uma espécie de purgatório pessoal, com a morte a pairar, de alguma forma. o tema, de resto, é algo que preocupa o autor. «acho que preocupa toda a gente. tive algumas mortes entre familiares, ou de amigos, marcantes. e, de cada vez que acontecem, há uma série de coisas que vêm ao de cima e que são difíceis de resolver. não sou religioso, tenho algumas relações com a igreja católica, mas não sou crente. e a morte ainda é mais difícil de resolver para quem não é crente. ou então está resolvida. essa ideia de vazio é tão forte que não se consegue fazer nada com ela. é um elefante na sala. temos um elefante nas nossas vidas que é a morte. tentamos tratá-la com os instrumentos pobres que temos, mas é sempre insuficiente».

o fim da linha na ciência

nuno camarneiro olha para a frente com desenvoltura, e assegura querer continuar a escrever. como quer também continuar a fazer ciência, essa sua outra paixão. em portugal trabalha na área da física e química, fazendo simulação computacional de moléculas e dando ainda aulas aos alunos de restauro da universidade portucalense, de ciências aplicadas aos bens culturais. espera ficar em portugal, mas sabe que o preço a pagar para cá viver é alto. a escrita é possível em toda a parte, a ciência está cada vez mais impossível aqui.

«a ciência em portugal, nos últimos 30 anos, teve uma progressão notável, em todos os aspectos. e isso reflectiu-se no número e qualidade das publicações por cientistas portugueses. mas há um fim de linha. depois de um ou dois pós-doutoramentos são poucos os que conseguem um lugar como professor ou um contrato. há uma enorme precariedade até muito tarde. esse tem sido o maior problema. com a crise estão a começar outros. teme-se um corte de financiamentos e há menos alunos a ir para o ensino_superior. o que não augura nada de bom». uma pena, diz nuno camarneiro, salientando que há áreas em que estamos no topo do que é feito mundialmente, como na neurologia e em várias áreas da biologia e da física._«há pequenos nichos onde temos dos melhores grupos mundiais. mas ao contrário dos países que absorvem os cientistas, como eua, inglaterra e alemanha, onde há um investimento das empresas muito sério na investigação e muitos cientistas que colaboram ou trabalham directamente com o privado, isso aqui não acontece. ainda não se percebeu que é pela investigação e pelo desenvolvimento que podemos conseguir ter melhor qualidade e exportar mais».

rita.s.freire@sol.pt