O Grande Gatsby: Gente estouvada

Na terra em que todos perseguem o mito que é o grande sonho americano, há um que é exclusivo dos escritores: o de escrever ‘o grande romance americano’. Inevitavelmente ambos se confundem. O segundo dificilmente exclui o primeiro. E não há melhor exemplo do que é ‘o grande romance americano’ que O Grande Gatsby, de…

talvez por isso poucos o tenham tentado secundar e poucos o tenham tentado levar ao cinema. herbert brenon fê-lo em 1926, num filme mudo, um ano após a sua edição (do qual já não há cópias existentes), elliott nugent em 1949, e jack clayton em 1974, naquela que é, até agora, a mais famosa dessas adaptações, com argumento de francis ford copolla e o belíssimo robert redford como gatsby.

agora, quase 40 anos depois – e quase um século volvido desde a sua edição – um novo sonhador arrisca levar ao grande ecrã esta obra maior do século xx. baz luhrmann, de resto, não é homem de medos, tendo já adaptado ao cinema uma das obras maiores da literatura mundial, romeu e julieta, de shakespeare (filme que contou, também ele, com leonardo dicaprio como protagonista). independentemente de como venha a ser recebido pela crítica, decerto que este seu gatsby vai, como romeu + julieta, em 1996, definir esta personagem para várias gerações.

há, porém, aspectos polémicos relacionados com a adaptação, como o uso da tecnologia 3d, vista por muitos como apenas um artifício para aumentar a corrida às salas, e a visão de luhrman de o grande gatsby como uma história de amor. se é verdade que o livro se debruça sobre o amor idealizado de gatsby por daisy, também é verdade que é muito mais do que isso. é sobre o sonho, a ilusão, o idealismo, a decepção e a luta de classes.

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nick carraway chega a nova iorque com o intuito de enriquecer na bolsa indo viver para long island onde tem como vizinho o enigmático e rico gatsby, que dá opulentas festas enquanto espera reconquistar o seu amor de juventude, a inconsequente daisy, prima de nick. mas daisy é casada e, quando confrontada com a necessidade de escolher entre gatsby e tom, a tragédia acontece. poderia ser uma grande história de amor não fosse o amor de daisy por gatsby nunca ser confirmado e não fosse o amor de gatsby por daisy um ideal, o grande sonho de gatsby, o grande sonho americano. daisy representa a riqueza antiga, a juventude, a felicidade familiar, o sucesso. é o sonho de alcançar tudo isto que move gatsby – e que inevitavelmente o vai destruir. são os que não têm ideais e que nada perseguem porque já tudo têm, os que subsistem. como diz nick: “era uma gente estouvada, a daisy e o tom – despedaçavam coisas e pessoas e, depois, entrincheiravam-se no seu imenso dinheiro ou na sua insensatez, ou lá o que era que os mantinha unidos, e deixavam aos outros o cuidado de varrer os estragos por eles produzidos”. não há mobilidade de classe, o dinheiro antigo mais forte que o dinheiro novo, no final tudo permanece igual.

sonhos com que também f. scott fitzgerald se debateu ao longo da sua curta vida. nascido em 1896, no minnesota, filho de um casal remediado, scott sempre se sentiu à margem até que, na universidade de princeton, começou a dar nas vistas, fosse pela sua inteligência, boa figura ou sagacidade. conheceu então um mundo que até aí lhe tinha sido vedado, o da riqueza aristocrática. aos 21 anos apaixona-se por zelda, na altura com 17, que viria a ser a sua mulher. imerso na vida boémia, tudo faz para a conquistar: escreve, é cada vez mais bem pago pelas suas letras, atinge o êxito em 1920 com a publicação do seu primeiro romance, este lado do paraíso e casa-se, enfim, com zelda.

juntos gastam fortunas. fitzgerald escreve sobre o que vive e é porta-voz de uma geração que se quer rebelar contra o vazio da prosperidade. nele, como em gatsby, está sempre presente o conflito: o mundo que o seduz é o mesmo que o destrói. com sérios problemas de alcoolismo, morre em 1940, com apenas 44 anos, de ataque cardíaco.

tudo isto foi nos anos 20 mas poderia ser hoje. a luta de classes continua, o sonho persiste e permanece inalcançável. como qualquer grande clássico, o grande gatsby trata da condição humana. à semelhança de gatsby, luhrman teve um sonho e lutou por ele, levando-o à tela, envolto em opulência. se isso conduzirá à decepção, o futuro o dirá. por enquanto, a crítica está dividida.

rita.s.freire@sol.pt