a falta de dinheiro não é ‘una cosa mentale’, mas a opinião derrotista, a visão sempre negra da vida e a constante repetição de que estamos dependentes destas circunstâncias ‘inevitáveis’ não ajudam ninguém a resolver problemas que requerem confiança e espírito prático. e como adquirir ou manter a confiança e uma certa ligação saudável à terra? continuando. quem trabalha, deve continuar a trabalhar, fazendo o melhor que sabe e pode. quem actualmente não tem trabalho, deve continuar à procura e deve continuar a pensar no que fazer para melhorar a sua situação. quem estuda, deve continuar a estudar. quem lê, pensa e escreve, deve continuar a ler, a pensar e a escrever. não é ‘persistir’ nem ‘preservar’. já temos dramatismo que chegue. é ‘continuar’. como quem continua a andar no meio de um temporal.
quebrar o silêncio
um artigo de elizabeth bernstein, no the wall street journal, fala sobre as origens e os malefícios de contar pormenores da vida íntima. não concordo com quase nenhuma das suas afirmações, a não ser quando diz que é insuportável ouvir intimidades de gente que mal conhecemos ou que pouco interessam. citou, no entanto, o exemplo daqueles que, quando estão sozinhos com um superior hierárquico, começam a desbobinar problemas da sua vida pessoal. já ouvi histórias de situações parecidas, algumas com protagonistas ansiosos por revelar pormenores e outras não. também acontece ao contrário: chefes que iniciam uma conversa com os subordinados a contar um pormenor da sua vida familiar. penso que estes casos são uma forma daquilo a que se chama quebrar o gelo. o grau de indiscrição ou aborrecimento pode dar-nos uma ideia do nosso interlocutor. mas na maior parte das vezes é apenas uma medida de intolerância ao silêncio.
temos de falar sobre kelvin…
… mas antes falemos sobre jorge jesus. como não adepta de nenhum clube de futebol, tema sobre o qual tenho o mesmo interesse do que o meu gato sobre mim, mas como mulher dedicada (praticamente santa) de um portista intenso, assisti ao jogo em que o benfica perdeu no último minuto e vi repetidas vezes a imagem de jorge jesus de joelhos à frente de um vítor pereira a correr à volta, à volta, como se fosse um menino de dez anos. devo esclarecer que jesus não se ajoelhou nada, nem julgo que possamos afirmar que estava de joelhos. jesus caiu por falta de força nas canetas, perdão, nas pernas. sofreu o equivalente a um murro no estômago ou a um desmaio. mas não se pôs de joelhos no campo de batalha à frente do inimigo, então? caiu porque ficou chocado e ficou caído porque a veia teatral latejou com mais força. sejamos rigorosos. (este texto foi escrito ao abrigo do desconhecimento total do que se passou na quarta-feira.)
cinco mil libras
o freud museum em londres lançou um apelo para restaurar aquela que a sua directora interina, dawn kemp, diz ser «a peça de mobiliário mais famosa do mundo». trata-se do sofá onde se deitaram os vários pacientes de sigmund freud, alguns dos quais conhecemos através de casos como o ‘homem dos lobos’, o ‘homem dos ratos’ ou ‘dora’. o sofá é quase tão antigo quanto o próprio freud (que nasceu em 1856) e foi oferecido por uma das suas pacientes ricas, como eram quase todos os que o consultavam. uma tal madame benvenisti fez a oferta em viena e o sofá acompanhou freud até londres, para onde foi com a família em 1938. está no mesmo sítio onde ficou, no consultório da sua casa, em hampstead, que é hoje um museu. há relatos de o sofá ser «muito confortável». talvez fosse o próprio freud e a actividade que ali se desenvolvia a verdadeira razão do conforto. e é assim que um sofá se torna património da civilização ocidental.
não intervir
a organização mundial de saúde fez uma recomendação que contraria o senso comum. dir-se-ia que os sobreviventes de desastres naturais precisam de apoio psicológico logo após a experiência que tiveram. mas parece que não é nada assim. vários estudos apontam para os malefícios de dar um certo tipo de apoio psicológico, que consiste em fazer com que a pessoa conte o que acabou de viver. a intervenção era habitual até 2004, altura em que houve um tsunami na costa do índico. as vítimas que relataram o que se passara manifestaram sintomas de depressão passado pouco tempo. as que não foram sujeitas à sessão de interrogatório psicológico ultrapassaram melhor a situação. só uma minoria de- senvolveu uma doença mental. o problema estará em reviver a par e passo uma situação extrema que o próprio cérebro ainda não compreendeu. reprimir também é uma forma de sobreviver. daí que lembrar no momento errado possa ser um choque insuportável.