Uma livraria chamada Esperança

É uma das mais belas e antigas livrarias do país. E, talvez, a mais original. A Livraria Esperança, localizada no centro do Funchal, um pouco acima da Sé, não deixa ninguém indiferente.

ao ver a pequena porta de madeira que dá para a rua, é impossível prever o mundo que se vai encontrar uma vez transposta a entrada. sala atrás de sala, este é um labirinto de livros. para onde quer que se olhe, os títulos saltam à vista. é que aqui as capas estão todas expostas, não há lombadas, economia de espaço. todos os livros são reis e todos merecem destaque. difícil, só mesmo a escolha.

encontramos lurdes figueira de sousa, a proprietária, no prédio em frente. o que agora é escritório, antes era espaço de livraria, devido a custos cada vez mais difíceis de suportar. mas as secretárias, em comparação com as enormes estantes e os milhares de livros guardados nas salas, continuam a ser poucas.

como nasceu, afinal, esta original e enorme livraria? trata-se de um projecto familiar, conta-nos a livreira, iniciado já lá vão mais de cem anos. foi em 1896 que jacintho figueira de sousa, avô do marido de lurdes, abriu a livraria e tipografia esperança, a primeira da ilha. ao longo dos anos, o estabelecimento conheceu várias moradas e um novo nome, casa figueira, mas nunca mudou de vocação. até que, em 1932, o fundador morre, deixando o negócio ao filho, josé figueira de sousa. é então que a livraria volta à sua rua original, a rua dos ferreiros, ao pé da universidade da madeira, onde ainda hoje está instalada (se bem que noutro prédio). jorge figueira de sousa, marido de lurdes, cresceu ali. «o meu marido começou a trabalhar na livraria desde miúdo. cresceram-lhe os dentes nos livros», conta lurdes. mas os irmãos eram muitos, como muitas eram as disputas familiares, e jorge dedicou-se a outros projectos. só com a morte do seu pai, nos anos 60, o filho pródigo regressa ao negócio familiar, com o apoio incondicional da mulher, lurdes, também ela amante do papel e dos textos nele inscritos. «mas as coisas com a família não corriam bem e começaram a ter problemas. em finais dos anos 60, início dos 70, os empregados disseram: ‘jorge, temos que sair’. o meu marido juntou-se aos empregados e abriram a esperança, o nome inicial».

o projecto resultou. e muito ajudado pela revolução dos cravos. «veio o 25 de abril. uma revolução de livros. toda a gente tinha febre de comprar e ler livros. e esta era a única livraria da madeira», conta a proprietária. embora, recorde, nem sempre os livros fossem comprados com o intuito de se os ler. «uma vez um casal recusou-se a comprar uma colecção porque a cor da encadernação dos livros não combinava com a da carpete. noutra, foi um sindicato que mudou de instalações e nos veio dar dinheiro e dizer a área que precisava de ter ocupada com livros, que podíamos escolher à vontade. tivemos que os pôr numa prateleira e medir. substituíamos mais grossos por mais finos até acertar com o tamanho».

o negócio corria de feição mas o espaço era pouco. queriam ter todos os livros editados em portugal só que não havia onde os arrumar. «tínhamos uma sala de livraria, depois fomos aumentando. havia filas de gente nas escadas que chegavam ao fim da rua. foi um boom de livros no funchal. os livros estavam acumulados, não tínhamos onde os pôr, estavam sempre a chegar novidades».

começaram com 12 mil livros e assumiram-se como a 3.ª maior livraria do país. e com grandes objectivos: ter em stock todos os títulos editados em portugal, repor os títulos vendidos, ser uma livraria de fundos. «queríamos ter todos os livros que existissem. só estava esgotado se esgotasse na editora. se não, ‘esgotado’ era palavra que não conhecíamos». e queriam mostrar os livros através da capa e não da lombada.

esta é, talvez, a sua maior originalidade. a ideia surgiu a jorge figueira de sousa numa feira, no funchal, onde, devido ao tipo de estante que lhe foi dada, muitos dos livros foram colocados de frente, em plano inclinado. e o livreiro percebeu que eram as obras expostas de capa aquelas que mais chamavam a atenção dos clientes, que lhes pegavam, folheavam e, várias vezes, compravam. decidiu que era assim que queria ter os livros na sua livraria. e encomendou estantes que o permitissem fazer. com o aumentar do catálogo, e à falta de espaço para estantes, nada como umas molas para os pendurar.

entretanto, um dia, entre uma remessa que alguém viria buscar e outra que alguém viria deixar, lurdes deparou-se com um problema de logística que implicava necessidade de espaço. «fui ao prédio da frente perguntar se me emprestavam espaço para pôr uns livros durante uns dias. quando fui agradecer a boa vontade, perguntaram-me se não queríamos comprar o negócio. comprámos». e a esperança passou a residir em dois prédios opostos, no n.º 119 e no n.º 154. «depois comprámos o prédio todo. e fomos construindo nos terrenos atrás à medida que precisávamos. quando os inquilinos saíam nós íamos ocupando os espaços».

os anos foram passando e, com eles, o número de livros. e, visto que o casal não teve filhos, em 1991 decidiu passar a livraria a fundação, criando a fundação livraria esperança, uma instituição particular de solidariedade social que dedica metade dos seus rendimentos a oferecer livros às crianças do arquipélago, com o intuito de aumentar os hábitos de leitura.

hoje, a esperança distribuiu-se por cerca de 1.200 m2, com quase cem mil livros expostos de capa, o que a torna uma das maiores livrarias do mundo.

mas os ventos não correm de feição. as pessoas cada vez lêem menos, há novas cadeias livreiras na ilha, a crise faz-se sentir também no sector do livro. quando, no passado ano, jorge figueira de sousa morreu, deixou a mulher, de 82 anos, à frente da fundação. lurdes está cansada e algo desiludida. os turistas entram, folheiam, fotografam, mas não compram. muitos dos antigos clientes já não vêm, os novos preferem as grandes cadeias. não é fácil assegurar o pagamento de ordenados todos os meses. mas este é um projecto de vida e é para continuar. com o proliferar do mercado editorial, viram-se obrigados a desistir de ter todos os títulos. e lurdes viu-se forçada a fazer contas à vida e a diminuir as despesas, desde a conta da luz aos ordenados.

«as pessoas estão a comprar menos. umas porque não têm interesse, outras porque não podem. mas não é só a crise económica. é a crise cultural». há, porém, que ser optimista. novos ventos virão, provavelmente com melhores direcções. o importante é manter as portas abertas para quem aqui quiser encontrar uma raridade há muito indisponível nas outras livrarias. e não se deixar abater pelos tempos difíceis. afinal, aqui, ‘esperança’ é a palavra de ordem.

rita.s.freire@sol.pt