Gatsby e a decadência

No início do The Great Gatsby, Tom Buchanan (o milionário que casou com Daisy, a paixão de Gatsby), refere alarmado a leitura de um livro de um tal Godard que profetiza a decadência da raça branca e a ascensão dos povos de cor.

o grande gatsby, de scott fitzgerald, cuja acção decorre no verão de 1922, saiu em 1925. oswald spengler publicou o segundo volume da decadência do ocidente em 1922. fitzgerald não sabia alemão, a tradução em inglês é de 1926, mas teve, seguramente, notícia do livro, até porque a obra de spengler atingiu em poucos anos os 150 mil exemplares.

fitzgerald foi um génio da literatura, não só pelo conhecimento fundo das paixões e da natureza humana e pelo modo admirável de as contar, como pelo conhecimento de outras coisas da vida – do céu, das estações, das cidades, das classes sociais. e percebeu e contou, como ninguém, a américa entre guerras, de nova iorque à costa oeste, dos americanos em frança (tender is the night) aos magnatas de hollywood, (the last tycoon).

a referência à decadência do ocidente corporizada no ‘mau da fita’, tom buchanan, é exemplo dessa genialidade e visão. porque a decadência do ocidente, melhor, da europa, estava então no princípio: começara com a grande guerra, ia aprofundar-se com a ii guerra, concretizar-se na descolonização. a guerra fria disfarçaria essa decadência, obrigando os europeus a ocuparem-se e a gastar dinheiro com a segurança e defesa, apesar de viverem à sombra de américa a quem, na nato, prestavam vassalagem a troco de protecção.

com o fim da união soviética e a chegada deste novo mundo kantiano que os pangloss de serviço se apressaram a celebrar, é que veio a bancarrota. a europa passou de império a baixo império, mas os ‘bárbaros’ conhecem as nossas tecnologias e as nossas cabeças, por que lêem os nossos livros e trabalham mais e gastam menos. como spengler e godard tinham previsto, até por que não eram tão racistas como pareciam.

lembrei-me destas coisas ao ler no público a entrevista a teresa de sousa, de um ‘europeu desencantado’, eduardo lourenço, que reconhece tudo aquilo que os europeus eurocépticos sempre souberam e disseram.

«não há uma ideia europeia». claro que não. a essência e a força da europa foi a unidade na diversidade, uma cultura e um espírito idênticos em comunidades políticas bem definidas, independentes e competitivas entre si. e foi a resistência dos estados-nações europeus às tentativas imperiais de carlos v, de napoleão, de hitler, foi essa resistência ao império, à unidade imposta por um centro que fez a força das nações europeias. no passado, foi pela competição militar, política, na ciência e na técnica e até na memória dessa rivalidade na literatura e na arte, que chegaram onde então chegaram.

mas a união (europeia) desfez a força (da europa).