Arendt em Lisboa

A ideia de organizar um festival de cinema de temática judaica no São Jorge, em Lisboa, não podia ter sido melhor. O ponto alto aconteceu com a exibição do filme de Margarethe von Trotta, sobre a cobertura de Hannah Arendt para a New Yorker do julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém.

a estreia do filme aconteceu em lisboa, antes mesmo de chegar a nova iorque, segundo nos informou elena piatok, directora executiva do certame. o filme é notável porque mostra as consequências de dizer «a verdade toda» de que arendt fala nos artigos, mais tarde transpostos para um livro que existe em tradução portuguesa. e «a verdade toda» é incómoda. por isso não pertence à política, mas à filosofia. a defesa de arendt do conceito de mal radical, praticado pelos «imbecis», como eichmann, não convenceu. mas o seu contributo para a discussão é inestimável. os humanos não são diabos nem monstros. são capazes de actos monstruosos. são responsáveis pela sua criminosa estupidez.

conversas de bairro

a padaria portuguesa e a produtora vende-se filmes tiveram a excelente ideia de nos mostrar partes do quotidiano dos clientes num documentário de cinco minutos. só não me apanharam a mim porque não moro na graça, o bairro eleito para a realização do filme. são momentos encantadores, como a vida ela mesma só consegue ser quando vista através dos gestos e das conversas dos outros. mas aquelas pessoas também somos nós. vamos tomar um café, elogiamos os pastéis de nata, agora levava quatro bolas de berlim, daquelas pequeninas, e trocamos duas palavras com o empregado sorridente. ou ficamos juntos numa mesa a contar histórias de quando íamos à foz do arelho, do ciclone, quando foi, a marcar encontros, a ouvir a nossa amiga a queixar-se dos filhos enquanto pensamos noutra coisa. somos mais ou menos parecidos na rotina, parecidos no desejo de proximidade com os outros. não é comum um documentário de cinco minutos ser tão comovente, pois não?

granta notícia

também acontecem coisas boas neste país, para variar do pessimismo e do ambiente geral de paralisação económica. a estreia da edição portuguesa da granta, publicada pela activíssima tinta da china e dirigida com entusiasmo e profissionalismo por carlos vaz marques, cujo editorial não devem perder, é mais do que uma boa notícia. senti um orgulho diria que parasitário porque nada tenho a ver com ela, quando li na capa, mesmo por baixo do título granta, ‘portugal 1 i’. o primeiro número do primeiro ano de uma sucessão, espero que nada menos que infinita, de exemplares com conteúdos de qualidade à procura do novo e a lembrar o velho, de autores portugueses e estrangeiros traduzidos para a nossa língua. assim, sem mais, a não ser a ambição de existir para quem lê. a revista é semestral. ora, a dois exemplares por ano, calculo que ainda poderei ler, se tudo correr bem, os próximos 79 números da granta portuguesa.

atum com morangos

o terreiro do paço está cada vez mais rodeado por restaurantes e cafés, a maior parte cheia de turistas a apanhar sol nas esplanadas. a vida ao pé do tejo é doce. há dias experimentei o can the can, que fica do lado esquerdo, mais perto do rio. e foi lá que as minhas papilas gustativas tiveram a maior surpresa da vida delas. o conceito do restaurante é inovador e tem a vantagem de usar produtos portugueses, sobretudo as nossas conservas. até as latinhas foram úteis na decoração do espaço. no menu há vários pratos sofisticados, entre as quais a divina butarga ou ovas de atum secas. o sabor é intenso e desperta o paladar. mas o mais surpreendente estava para vir. o chef akis konstantinidis recomendou logo uma salada com morangos e filetes de atum. perante aquela paixão, não pudemos recusar, mas a sugestão era recebida a medo. para os dois, fruta é lanche. ficámos ambos felizes por termos aberto tão deliciosa excepção.

tango patriótico

o dia nacional argentino é celebrado a 25 de maio, mas os festejos começam no dia anterior. este ano perdi o cocktail de 24, mas assisti ao recital organizado pela embaixada da argentina em portugal da selección nacional de tango, no teatro tivoli. o sexteto faz parte de um grupo grande, formado em 2005, que mistura músicos experientes com outros mais novos, sendo todos musicalmente virtuosos e defensores do tango tradicional. foi um espectáculo maravilhoso, que teve a particularidade de abrir com o hino nacional argentino tocado ao ritmo de tango, com bandoneones, violão, contrabaixo e piano. a calidez do som não neutralizou a letra belicista característica da maioria dos hinos nacionais. sem deixar de ser hino nem chegando a ser tango, foi emocionante. os portugueses presentes, alguns aliviados, outros desiludidos, esperaram em vão por uma versão d’a portuguesa em fado. não houve. tivemos de nos contentar com a versão instrumental habitual.