Dois lutadores antimáfia

Os tempos modernos têm os seus mártires. A maioria destes mártires – alguns milhões – morreu no universo comunista e noutros espaços concentracionários; outros, como milhares de sacerdotes e leigos católicos na Espanha da Frente Popular; outros morrem ainda hoje, na África ou Médio Oriente, onde o radicalismo paranóico faz deles vítimas.

mas há outros mártires da fé: no passado 26 de maio, o papa francisco anunciou a beatificação de d. pino puglisi, assassinado há vinte anos, em palermo, sicília, pela máfia. a razão da execução do padre puglisi foi a acção social junto dos jovens da rua, que disputou e arrancou às malhas do crime organizado. no decreto de beatificação, refere-se que ele foi assassinado por aqueles que têm «ódio à fé».

a causa da beatificação do padre puglisi fora aberta em 1999 e concluída em 2012 por bento xvi. a beatificação foi em palermo, onde nascera em 1937 e morrera assassinado em 1993, por um sicário à ordem de dois capos mafiosos, os irmãos graviano.

este episódio lembrou-me outro lutador antimáfia, cesare mori, cuja vida e obra na sicília serviram de tema a uma série televisiva da rai que também vi agora.

mori tem uma história fascinante: nascido em 1871 foi recolhido num orfanato e reconhecido, aos oito anos, pelos progenitores; estudou na academia militar de turim e seguiu a carreira de polícia. foi nomeado comissário em trapani, na sicília, onde se distinguiu pela eficácia dos seus pouco ortodoxos métodos anticrime.

mori não tinha medo de nada. durante a grande guerra, chefiou esquadras especiais anticrime. percebeu então que além da arraia-miúda dos delinquentes – assassinos profissionais, ladrões de gado, desertores – havia um escalão superior, da gente ‘bem’, importante, intocável, que comandava na sombra. mexeu-lhe, e acto contínuo, foi promovido e transferido para turim.

em fevereiro de 1921, foi nomeado prefeito de bolonha. era o tempo da luta entre os fascistas e as esquerdas, guerra de ruas e de expedições punitivas. mori, para fazer cumprir a lei, disciplinou duramente os contendores. quando os fascistas subiram ao poder, em outubro de 1922, já não estava em bolonha. mas o próprio mussolini o chamou para, usando do mesmo rigor que tinha usado contra os fascistas, acabar com o domínio mafioso na sicília. no telegrama de nomeação, o duce dava-lhe «carta branca para restabelecer na sicília a autoridade do estado; se as leis em vigor forem um obstáculo, faremos novas leis sem qualquer problema».

em quatro anos, assim apoiado pelo poder central, com coragem, inteligência e determinação, mori conseguiu reduzir drasticamente o polvo mafioso, (os homicídios na província de palermo passaram de 268 em 1925 para 77 em 1926), atingindo as cúpulas da organização e os seus cúmplices políticos e sociais, entre os quais um ex-ministro e o próprio secretário-geral local do partido fascista. em 1929, mori foi nomeado senador. morreu em 1942.

deve ter sido a única vez que a ‘honrosa sociedade’ vergou a cabeça. em 1943, nas vésperas do ataque à sicília, os americanos foram buscar lucky luciano a uma prisão federal, libertando-o para os ajudar localmente nas operações de desembarque.

e a máfia renasceu e prosperou desde então. até hoje.