Caso Snowden: Diplomacia em voos cruzados

Com os Estados Unidos ainda a gerirem o impacto das primeiras revelações do ex-técnico da Agência Nacional de Segurança (NSA) Edward Snowden sobre o programa de espionagem electrónica em massa norte-americano, PRISM, uma nova frente da guerra entre Washington e o resto do mundo foi aberta no domingo pela revista alemã Der Spiegel.

baseando-se em documentos confidenciais revelados por snowden, a publicação germânica revelou que a nsa espia há vários anos as instituições da união europeia, incluindo a sede da comissão embruxelas, e as representações diplomáticas de destacados aliados da casa branca nos eua – da frança à alemanha, passando pelo japão, coreia do sul, índia e 33 outros países.

a alemanha é aliás um dos principais alvos. segundo a der spiegel, por mês são vigiados cerca de 500 mil milhões de e-mails, chamadas e sms, fazendo da alemanha um dos países mais monitorizados pelos norte-americanos. só os países do médio oriente, o afeganistão e o paquistão são mais espiados. em menor número, o cenário repete-se nas demais nações do velho continente.

‘todos’ fazem o mesmo, defende obama

reagindo ao novo capítulo deste escândalo, a chanceler germânica angela merkel classificou de «inaceitável» e «intolerável» qualquer acto de espionagem entre nações aliadas. «já não estamos na guerra fria», frisou, sublinhando não ser possível a cooperação com washington sob um clima de constante suspeita. «a confiança tem de ser restabelecida já», lia-se num comunicado divulgado pela chancelaria.

martin schulz, presidente do parlamento europeu, apressou-se a pedir esclarecimentos «mais precisos» aos eua, antevendo o « fardo» que o escândalo poderá representar nas relações entre o bloco americano e a ue. mas françois hollande foi mais longe e revelou os primeiros estragos na aliança transatlântica. o presidente francês pediu, na quarta-feira, a suspensão «temporária» das negociações de comércio livre entre os eua e a ue lançadas durante a última cimeira do g8. até ordem em contrário, porém, o arranque das conversações mantém-se agendado para segunda-feira.

na quarta-feira, e perante a indignação dos aliados, o presidente norte-americano barack obama voltou a relativizar as actividades da nsa. «todas as nações recolhem dados», disse, negando contudo que a casa branca espie chefes de estado e de governo europeus. «se quiser saber o que merkel, david cameron ou hollande pensam, telefono-lhes», afirmou. no entanto, obama acedeu na quarta-feira aos pedidos de berlim para conversações ao mais alto nível que esclareçam os germânicos.

outras questões prometem continuar no ar. a oposição alemã de esquerda questiona agora se a indignação dos líderes europeus não será encenada, dada a permanente troca de dados entre as autoridades dos dois lados do atlântico. ou, caso contrário, se a contra-espionagem germânica falhou redondamente ao não detectar a actividade da nsa.

incidente aéreo abre crise

a meio da semana, e enquanto crescia o fosso diplomático entre europeus e norte-americanos, um novo capítulo da saga snowden ameaçava as relações entre o velhocontinente e a américa do sul. «suspeitas infundadas» de que snowden – que continua em parte incerta – seguiria a bordo de um avião que transportava o presidente da bolívia, evo morales, de volta a casa depois de uma cimeira em moscovo levou portugal, espanha, itália e frança a fechar o espaço aéreo ao chefe de estado. o jacto foi obrigado a interromper a viagem e a aterrar em viena de áustria, provocando a ira de la paz contra lisboa, madrid, paris e roma.

segundo o governo boliviano, o incidente chegou a colocar a vida do presidente em risco, uma vez que a aeronave não tinha combustível suficiente para uma rota ziguezagueante sobre a europa. portugal alegou «considerações técnicas» para a recusa da passagem e aterragem do avião boliviano. surpreendida pelo pedido de demissão do ministro luso dos negócios estrangeiros paulo portas, a diplomacia portuguesa ainda não reagiu à ameaça de expulsão do seu embaixador em la paz. a bolívia promete ainda denunciar o caso às nações unidas e declarar persona non grata o diplomata português.

vários países sul-americanos, incluindo a venezuela, declararam apoio à bolívia na disputa com os europeus, condenando o «ataque directo» a um chefe de estado e a «violação das leis da imunidade diplomática». a presidente argentina cristina kirchner falou, através do twitter, em «humilhação» e «nível de impunidade sem precedentes». o brasil foi dos últimos a reagir: a presidente dilma rousseff afirmou que o episódio «atinge toda a américa latina» e deixou recados a hollande, declarando-se surpreendida com a atitude de «certos governos» que dias antes expressavam a sua ira perante os eua.

a bolívia fazia parte da lista de 21 países aos quais snowden endereçou pedidos de asilo no início da semana. depois de ter retirado a solicitação à rússia, por putin ter imposto como condição que parasse de «infligir danos aos parceiros americanos», as hipóteses de snowden diminuem de dia para dia. a maior parte dos países alega que o norte-americano tem de entrar nos respectivos territórios para fazer o pedido. algo improvável, já que snowden viu o seu passaporte ser cancelado por washington. segundo o kremlin, o técnico permanece em terra de ninguém, num limbo legal, na zona de trânsito de um aeroporto moscovita.

este sábado, tanto a nicarágua como a venezuela mostraram-se receptivas a dar «asilo humanitário» ao ex-espião, com os dois chefes de estado, daniel ortega e nicolas maduro, a discursarem efusivamente contra a «perseguição do império mais poderoso do mundo a um jovem que decidiu dizer a verdade».

rita.dinis@sol.pt