Orquestra Geração: Música para a vida

A viver todos os anos a incerteza do apoio do Ministério da Educação, a Orquestra Geração, inspirada no modelo venezuelano, já agarrou em mil alunos de zonas problemáticas e deu-lhes formação musical séria e novos horizontes. O SOL acompanhou o projecto numa escola da Amadora, dias antes da apresentação dos alunos na Aula Magna, no…

quem passar por esta sala, a uma quarta-feira, na escola pedro d’orey, apercebe-se de que algo de importante está prestes a começar, e não é uma aula qualquer: é dia de ensaio da orquestra geração. mais de 40 alunos estão sentados, de lado para o quadro mas virados para o professor, com vários instrumentos nas mãos. os dos violinos, violoncelos e outros instrumentos de corda estão sentados em meia-lua à volta do professor e os dos oboés, bombardinos, tubas e restantes instrumentos de sopro estão dispostos em filas, no fundo da sala.

o professor joão azevedo – o maestro de serviço – espera, de braços cruzados, enquanto alguns alunos vão trocando os últimos dedos de conversa com o colega do lado, outros vão afinando os instrumentos e há ainda quem esteja a olhar fixamente para as partituras.

quando finalmente estão todos em silêncio o professor dá as primeiras indicações. na próxima hora e meia, pouco mais se vai ouvir além dos sons saídos dos instrumentos e as explicações do maestro e dos outros professores.

esta escola básica, na amadora, aderiu à orquestra geração há ano e meio. para antónio gamboa, director da escola, o projecto assenta que nem uma luva nas necessidades dos alunos, muitos deles inseridos em bairros e famílias desfavorecidas e que de outra maneira não teriam contacto com este mundo: «é um projecto que obriga tanto os alunos como os encarregados de educação a um grau de responsabilidade que dificilmente teriam noutras actividades», explica.

mais de mil alunos em seis anos

o projecto orquestra geração arrancou em 2007, na escola miguel torga, também no município da amadora. a ideia surgiu de uma conversa entre o responsável pela educação e cultura da câmara da amadora e antónio wagner dinis, então presidente do conselho de gestão do conservatório nacional para integrar uma vertente musical do ‘projecto geração’ – que pretende combater o absentismo e o abandono escolar – já implementado no bairro da boba (concelho da amadora).

desde então, a orquestra geração já alargou os seus horizontes a mais 12 escolas, 11 no concelho de lisboa e uma em coimbra. inicialmente, abrangia 15 alunos. hoje em dia são cerca de 800. mas na totalidade «já passaram pelo projecto mais de mil crianças», como refere antónio wagner dinis, actualmente adjunto da direcção da escola de música do conservatório nacional (emcn), encarregado da orquestra geração – órgão responsável pela parte pedagógica do projecto e através da qual são contratados os professores.

o apoio financeiro deste projecto advém, essencialmente, de duas fontes: o ministério da educação e as autarquias onde estão inseridas as escolas que acolhem a orquestra. existem ainda outras instituições privadas que apoiam esta iniciativa como os bancos barclays e bnp paribas, a fundação gulbenkian e a tap, entre outras.

a fundação gulbenkian apoiou ainda um documentário sobre a orquestra geração, realizado por filipa reis e joão miller guerra e que foi exibido, entre 2011 e 2012, em vários festivais e salas de cinema (nomeadamente no doclisboa em 2011). o documentário faz o retrato de alguns jovens que pertencem à orquestra da escola miguel torga e acompanha o seu dia-a-dia.

os instrumentos entregues a cada orquestra são fornecidos pelas autarquias, através do qren (quadro de referência estratégico nacional): «as autarquias concorrem ao financiamento do qren que lhes permite pagar, entre outras coisas, os instrumentos», explica antónio wagner dinis. no caso da escola pedro d’orey, foi a câmara municipal da amadora que fez a aquisição dos instrumentos. cada aluno fica responsável pelo instrumento, quando lhe é entregue.

o método de ensino, todavia, não é o tradicional, uma vez que este projecto é herdeiro do sistema de orquestras infantis e juvenis da venezuela (el sístema), fundado em 1975 pelo músico e maestro venezuelano josé antonio abreu e, hoje em dia, a cargo da fundação musical simón bolívar: «parte muito do trabalho em grupo e da imitação, uma vez que os alunos começam por imitar os professores e o objectivo é que eles usem as competências que são necessárias no trabalho em orquestra para que seja uma mais-valia nas suas vidas», acrescenta helena lima, assessora da direcção da emcn para a orquestra geração.

cidadãos melhores

o sistema venezuelano procura apoiar crianças e jovens provenientes de bairros sociais através do trabalho em orquestra (feito inevitavelmente em grupo), de modo a integrá-los na sociedade, «aumentando-lhes a auto-estima e o respeito pelo outro, de forma a combater o absentismo escolar e a saída para a marginalidade», como se pode ler no site do projecto português. «nós temos uma acção preventiva de conflitos nos bairros onde trabalhamos. a nossa função não é só ensinar música, é também juntar as pessoas para que elas saibam estar umas com as outras», acrescenta antónio wagner dinis.

a orquestra geração está longe de andar à procura de génios musicais – pelo contrário. «aliás, isso seria defraudá-los, de certa maneira», refere antónio gamboa. «o nosso objectivo principal é que eles saibam estar e que sejam cidadãos melhores», explica ana filipa serrão, professora de violino.

ainda assim, é difícil esquecermo-nos que o el sístema ‘produziu’ o violinista e maestro gustavo dudamel, que hoje em dia é director musical da orquestra filarmónica de los angeles e da orquestra sinfónica simón bolívar.

tanto os pais como os professores sentem que os alunos olham para a orquestra como algo de especial. «a maioria destes miúdos estão inseridos em bairros problemáticos e vêem na orquestra algo em que podem agarrar», confirma ana filipa. «os alunos sentem que é um espaço só deles e percebem que têm ali pessoas que se preocupam com eles», acrescenta vânia moreira, professora de violoncelo.

o projecto orquestra geração é muito mais do que um local para aprenderem a tocar. «isto é um projecto em que a música é uma ferramenta. é uma micro-sociedade que lhes dá muitas bases a todos os níveis, que lhes aumenta a auto-estima e faz com que eles sintam que fazem parte de algo, com o complemento de aprenderem um instrumento musical», refere joão aibéo, professor de tuba.

na escola pedro d’orey, os alunos têm idades compreendidas entre os 9 e os 13 anos e dedicam à orquestra oito horas semanais, em regime pós-escolar, por norma entre as 16h e as 20h, consoante a escola e a disponibilidade dos alunos. têm uma hora de formação musical e coro, uma hora de técnica instrumental, duas horas de naipe – aulas em que se juntam os mesmos instrumentos –, três horas de orquestra e uma hora de expressão dramática. isto pode parecer muito cansativo, mas ninguém se queixa. «gosto muito dos ensaios, assim posso conviver com os meus colegas», conta yaroslave, de 13 anos, que toca viola-d’arco.

a verdade é que pertencer a esta orquestra implica treinos regulares. grande parte dos alunos prefere ensaiar na escola. «concentro-me mais facilmente», explica catarina, 12 anos, aluna de trompete. mas há quem também leve os instrumentos para casa para praticar durante o fim-de-semana. ainda assim, para alguns não é possível: «é complicado levar o bombardino para casa, é muito pesado», argumenta erica, de 13 anos.

apesar de ainda estar numa fase embrionária nesta escola básica, a orquestra geração já começa a dar frutos. «nota-se uma evolução nos alunos a todos os níveis. no comportamento, ganharam mais paciência e têm uma maior disciplina», refere a professora de violino.

a disciplina é muito promovida pelos professores, durante as aulas, especialmente no primeiro período do ano lectivo de 2011/2012, quando ainda não tinham chegado os instrumentos: «os alunos tinham que entrar na sala em fila, sem barulho e sem correr. se fosse preciso, entravam e saiam da sala 20 vezes e isto facilitou o nosso trabalho quando os instrumentos chegaram, em janeiro», recorda ana filipa, acrescentando que foi também uma maneira de os ensinar a trabalhar em grupo: «é importante que eles percebam que basta um para estragar o colectivo».

prova máxima de que foi feito um excelente trabalho é o ensaio a que o sol_assistiu. assim que os alunos começam a querer dispersar, a professora ana filipa grita: «atenção!». e todos respondem em coro «sim, senhor!», calando-se de imediato.

mas a cereja em cima do bolo, para estas crianças, é, sem dúvida, os concertos. alguns confessam o nervosismo que sentem antes de o espectáculo começar: «é muita gente a assistir… afinal, quem é que não ficaria nervoso?», ri-se guilherme, violoncelista de 10 anos. outros são mais despachados, como alexandre, de 11 anos, que toca violino e assegura: «eu não fico nervoso!».

«o objectivo é que eles se apresentem frequentemente porque é também aquilo que os motiva para irem às aulas e para estudarem», defende helena lima.

em média, cada escola faz cerca de 20 a 30 apresentações, por ano – dentro e fora das instalações escolares. isto para além do espectáculo final, onde todas as orquestras das várias escolas do projecto se juntam todos os anos, no mês de julho. este ano, o espectáculo irá realizar-se no dia 9 de julho, na aula magna.

a orquestra da escola da boavista tocou, por exemplo, na entrega dos prémios visão, a 24 de maio, e, no dia 30 de abril, a orquestra da escola miguel torga/zambujal tocou na abertura das conferências do estoril. o último concerto da orquestra da escola pedro d’orey foi na feira do livro, em lisboa, no passado dia 24 de maio.

no final dos concertos, cada instrumentista avalia individualmente a sua experiência. «quando começo a tocar, o nervosismo passa. no final, fico orgulhosa e com vontade de fazer outro concerto», conta catarina. já erica vê a sua prestação de forma diferente: «fico sempre a pensar que podia ter feito melhor». e há ainda quem não poupe a assistência. «não gosto nada quando as pessoas fazem barulho quando estamos a tocar», critica alexandre.

mas verem o orgulho dos seus mentores, depois das apresentações, também é importante: «a professora filipa faz um grande sorriso quando toco bem», diz gabriel, um violinista de apenas 11 anos.

projecto com futuro incerto

os próprios pais são dos maiores apoiantes e incentivadores deste projecto, especialmente porque notam diferenças significativas nos filhos: «a nadine era uma rapariga muito tímida e que pouco interagia com os colegas, mas desde que entrou para a orquestra mudou por completo. aproximou-se muito mais dos colegas, além de estar mais responsável e madura», refere helena vicente, mãe de uma aluna de violino da escola pedro d’orey.

anabela rodrigues já nota uma mudança no seu filho, especialmente em termos comportamentais: «o rafael era muito impulsivo e pouco paciente. desde que está no projecto, é mais calmo, mais ponderado e mais paciente».

quando salomé, agora com 10 anos, se mudou para a escola pedro d’orey, fê-lo especialmente para entrar na orquestra geração. para a mãe, a orquestra facilitou a integração num novo ambiente escolar. «ajudou-a a criar novas amizades, além de ter melhorado o seu desempenho escolar e ter aprendido a trabalhar em grupo», refere estela tomás.

estes pais também estão muito gratos aos professores, como é o caso de natalya abishkyna, de nacionalidade russa e a morar em portugal há dez anos : «isto permitiu ao yaroslave descobrir uma coisa de que gosta muito». mas principalmente, todos referem que deu a conhecer aos filhos outras realidades que, provavelmente, não seria possível conhecerem de outra maneira. «enquanto mãe e apesar de querer o melhor para ele, não lhe poderia proporcionar todas estas experiências», refere anabela rodrigues.

desde a sua criação, a continuidade deste projecto está constantemente em dúvida, apesar dos vários convites para concertos e dos vários prémios que lhe têm sido atribuídos – a distinção mais recente foi ter sido considerada umas das 50 boas práticas sociais de toda a união europeia.

todos os anos, há uma incerteza quanto ao financiamento do ministério da educação, do qual a orquestra geração é totalmente dependente. «o ministério da educação é quem paga os ordenados dos professores e nós nunca sabemos ao certo se o ministério vai renovar esse pagamento», afirma antónio wagner dinis, acrescentando que, no ano passado, só receberam a confirmação em agosto (com o ano lectivo a começar em setembro). «sem o apoio do ministério será muito difícil o projecto continuar».

rita.porto@sol.pt