o encontro estava marcado para o fábulas, café-restaurante no centro do chiado. afinal, nenhum outro local faria mais sentido para conhecer esta jovem mulher que conta histórias com as suas agulhas de tricot. as histórias do pandapuma, da panteraraposa, do ursotigre não saíram do imaginário de la fontaine, mas de sónia pessoa. a jovem franzina tem os olhos postos num livro e as mãos movem-se a mil à hora com duas agulhas intrépidas e linhas coloridas.
numa fracção de segundo – entre o tricot de sónia e as velhinhas máquinas de costura que decoram o fábulas – é como se viajássemos até casa da avó de sónia, e responsável pela sua paixão. “comecei a tricotar com sete anos porque via a minha tia e a minha avó. em vez de ver televisão ou brincar com bonecas fazia tricot. sou muito teimosa e por isso comecei por fazer uma camisola. ainda hoje a minha avó, que tem quase 80 anos, faz coisas lindas. trocamos imensas ideias. gosto de lhe mostrar o que faço e ela nunca achou estranho”.
nasceu e cresceu em évora e, apesar da paixão pela planície, sabia que não queria continuar a viver ali. por isso, em 1999, rumou a lisboa para estudar design de interiores. “queria vir para lisboa, tinha primas cá e vinha sempre nas férias do verão. vinha de uma aldeia onde toda a gente se conhecia e aqui era incógnita”. consigo, claro, vieram as agulhas e os novelos. gostava de se sentar em bancos de jardim e de aí desenhar as suas histórias. habituou-se a que olhassem para si com estranheza. “lembro-me de estar na gulbenkian, que era um sítio para onde ia tricotar no verão, e ouvir bocas. as pessoas da minha idade olhavam para mim com um ar ‘que seca!’”. mas sónia muitas vezes nem se apercebia desse julgamento alheio. andava por ali, nos seus pensamentos que ganhavam forma em malhas de lã.
no terceiro ano do curso, percebeu que se tinha enganado e desistiu. como gostava de maquilhagem, aceitou a sugestão de amigos e participou num concurso cujo prémio era uma formação com a maquilhadora antónia rosa. ganhou. e durante dez anos trabalhou como maquilhadora profissional, para as principais revistas e eventos de moda – onde se cruzou e fez amizades com muitos que hoje acompanham o seu trabalho. em simultâneo começou a vender as suas peças, ainda com o seu próprio nome. “nem sei como, mas comecei logo a vender na loja da modalisboa”.
em 2005, quando já tinha peças à venda em lojas de lisboa, coimbra, porto e amesterdão bateu com a porta. “estava muito cansada”, confessa. “fazia muitas horas de tricot, tinha muito trabalho de maquilhagem, dormia muito pouco. precisei de parar”. durante cinco anos esqueceu a companhia das agulhas. arrumou tudo numa caixa que não mais abriu até 2010. graças à crise. “sentia que precisava de fazer mais coisas para me sentir realizada e o facto de começar a ter menos fluxo de trabalho e mais tempo livre fez-me pensar ainda mais nisso”. procurou outro emprego, mas sem sucesso. até que os amigos lhe abriram os olhos. “disseram-me: ‘pega nas agulhas’”.
sónia limpou o pó à caixa onde arrumara o passado e aceitou o desafio do amigo daniel dinis, designer de moda, para criar os acessórios para a sua colecção de inverno 2012, que iria apresentar na modalisboa. nas vésperas do evento de moda, porém, surgiu uma grande dúvida: como chamar à marca que agora ressuscitava? “não queria usar o meu nome, que entretanto estava associado à maquilhagem”. assim, de repente, o ursotigre saiu da toca, um nome que já habitava nos cadernos que a acompanham sempre e onde escreve “coisas sem nexo”.
desde então a vontade de tricotar começou a persegui-la. não voltou a pousar as agulhas. “levo o tricot para todo o lado, quando estou a ler, quando vou fazer uma viagem ou até quando saio à noite. às vezes doem-me os dedos e os pulsos, mas faço pilates e natação para contrariar as dores”.
trabalha sozinha e tudo sai da sua cabeça, como se lá morasse uma caixa de lápis e uma folha branca. “as minhas peças crescem à medida que as teço”. sempre que não gosta de algo, não desmancha nem deita fora. apenas remata a peça e guarda-a numa caixa. todas as peças ursotigre são únicas e algumas podem demorar duas semanas a fazer. os preços são calculados em função das horas que consumiram. “não quero criar coisas de vestir e deitar fora”.
sónia ainda não vive do ursotigre, mas admite que no último ano a marca cresceu muito, sobretudo a partir do momento em que organizou uma festa na discoteca lux, em parceria com o próprio manuel reis e a rosários 4, marca de novelos. a música, afinal, marca a vida de sónia pessoa. é ali que muitas vezes encontra soluções: “quando não sei qual é o caminho, com música percebo tudo, vejo como a roupa dança”. e foi na música que sónia encontrou a sua mais recente ‘parceira de crime’: chrysta bell, musa do realizador de cinema david lynch. sónia conheceu a cantora através de amigos do lux, onde chrysta deu um concerto, e ofereceu-lhe um vestido. “parecia uma criança a abrir um presente. vestiu-o logo e andou com ele o resto da noite. depois disso fomos falando e ela mandava-me fotos com o vestido em vários locais da tournée. fui-lhe enviando mais peças porque percebi que ela gostava mesmo e porque gosto de oferecer. e entretanto disse-me que vinha a lisboa e que gostava muito de fazer uma sessão fotográfica para mim”. um dos nomes mais falados da música actual, figura habitual nas páginas de revistas como a vogue itália, passou a ser a imagem do ursotigre. e a internacionalização parece estar à porta, com uma loja de barcelona já interessada e contactos de outros países.
mas o tricot não é apenas algo que sónia pessoa faz, não é um negócio. é algo que a define. são histórias que conta, declarações de amor. é um refúgio para longe da sua timidez e uma viagem de regresso aos sete anos, quando percebeu que com três rectângulos se faz uma camisola.