‘Há tribunais a limitar a liberdade de expressão de forma chocante’

Francisco Teixeira da Mota é um dos grandes defensores da liberdade de expressão no país e pelas suas mãos já passaram centenas de queixas contra jornalistas. No ensaio A Liberdade de Expressão em Tribunal, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o advogado diz que muitas sentenças reflectem a cultura do ‘respeitinho’ e que as elevadas…

os tribunais têm limitado a liberdade de expressão em portugal?

há casos em que os tribunais têm limitado a liberdade de expressão de forma chocante, mas também há casos em que a têm permitido. ao princípio, havia uma grande resistência dos nossos magistrados à jurisprudência do tribunal dos direitos do homem, mas hoje em dia já há muitos que acolhem sem reservas essa jurisprudência, que dá um valor primordial à liberdade de expressão e entende que ela só deve ser restringida face a liberdades sociais imperiosas. isto é quando há motivos muito sérios, contrariando a visão tradicional de que por exemplo o bom nome prevalece sobre a liberdade de expressão.

é a cultura do ‘respeitinho’?

ainda há juízes com uma visão muito conservadora, que consideram que a convenção dos direitos do homem é estrangeira, apesar de ter sido transposta para a lei nacional. e há tribunais que continuam a fugir a ela. limitam-se a dizer que a lei é muito importante, mas depois voltam a aplicar jurisprudência mais conservadora.

esta visão ‘paternalista’ é herança do estado novo?

duvido. este desprezo pela liberdade de expressão vem mais de trás. e não é um problema da esquerda nem da direita: todos querem defender as suas capelinhas, os seus valores estabelecidos, o status quo, os seus grupos. como não há uma mentalidade liberal em relação à liberdade de expressão, não se pode falar mal. não se pode fazer uma crítica forte, contundente e séria…

é o caso do comentário de miguel sousa tavares que levou cavaco silva a pedir a abertura de um inquérito por difamação?

uma pessoa tem de ter o direito de achar que o presidente da república tem um papel ridículo. é preciso distinguir factos de opiniões. se eu disser numa notícia que o josé é ladrão, isso é um facto provável: ou roubou ou não roubou. mas se eu disser que ele é um péssimo político isso não é um facto, é uma opinião. não é possível provar isto e as opiniões não têm de ser contidas. os nossos tribunais não sabem distinguir isto, há juízes que põem tudo no mesmo saco: é tudo ofensivo, é tudo dizer mal.

essa cultura tem um forte impacto social…

num tempo em que se agudizam as crises sociais, coarctar a liberdade de expressão, nomeadamente ao nível da opinião, é perigosíssimo. é muito perigoso que o presidente da república esteja a querer incentivar processos-crime por opiniões ou críticas. nós precisamos, e muito mais agora, de não ter medo de criticar. e os jornalistas precisam muito mais agora de não ser intimidados para poderem contar as histórias. se começamos a ter medo de dar opiniões aquilo que hoje em dia se passa ao nível do poder, e é uma vergonha, torna-se ainda mais opaco. temos de ter uma imprensa livre para poder criticar e também para poder errar.

mesmo com excessos?

o excesso faz parte da liberdade de expressão, que não pode ser medida ao milímetro. tem excessos, tem exageros, que magoam ou ofendem. a liberdade de expressão não é algo de inócuo.

mas há decisões graves como a de rui pedro soares que conseguiu travar a publicação de escutas no sol invocando o direito à reserva da vida pessoal?

essa decisão, que foi confirmada pela relação, é um escândalo. conseguir quartar o direito da sociedade a ter informação essencial é de uma total insensibilidade aos valores da liberdade de expressão e de uma percepção do poder chocante. as gravações em causa eram legais, feitas no âmbito de um processo de investigação, e não tratam de questões pessoais mas de questões político-económicas de enorme relevo público. os tribunais deveriam ter afastado a proibição da sua publicação.

é outro tipo de censura…

é uma censura judicial, não é prévia mas à posteriori.

o mesmo acontece quando há sentenças contra jornalistas com valores milionários: santana lopes ganhou um acção contra o grupo impala com direito a uma indemnização de 730 mil euros por difamação…

são sentenças com valores absurdos. não quero pronunciar-me porque estou envolvido nesse recurso, mas a sentença revela uma total ignorância do que é a liberdade de expressão. essas decisões com elevados valores vão quartar não só a liberdade de expressão mas põem em causa a sobrevivência das empresas de media. têm uma função intimidatória grave. alguns tribunais não têm a menor sensibilidade e tratam a liberdade de expressão como tratam questões de fornecimento de chouriços. a liberdade estrutural de uma sociedade não pode ser tratada como coisa menor.

que caso mais o chocou?

o do rui pedro soares, porque teve imensas consequências naquilo que é a percepção do que é a liberdade de expressão no país. fez recuar a nossa sociedade em termos de valores como a honestidade e a seriedade. na minha opinião beneficiou o transgressor.

joana.f.costa@sol.pt

 

entrevista de joana ferreira da costa fotografia de ana nabais