a segunda crónica era também sobre manipulação fotográfica: reproduzia-se a imagem de uma suposta manifestação em luanda contra os chineses, que afinal correspondia a um desfile em bissau contra a violência.
hoje, no mesmo registo de questionar aquilo em que podemos acreditar, transcrevo o seguinte extracto de uma notícia de um jornal diário: «albina estava sozinha quando se sentou no poço e ia ligar o motor para poder regar. ‘ficou sentada com a mão enfiada no poço e outra na enxada’, lembra um vizinho. o corpo foi encontrado pelas 13h00. quando a vizinha, já com o irmão de albina, chegaram ao local, encontraram-na entre o milho».
mau! – pensei. então a vítima ficou «com uma mão enfiada no poço e outra na enxada», ou caiu no meio do milho?
intrigado, procurei a mesma notícia noutro jornal. li: «uma mulher de 52 anos morreu electrocutada em avanca, estarreja, quando ligava o interruptor do motor do sistema de rega. maria albina foi encontrada já sem vida sentada em cima do poço».
aqui não há margem para dúvidas. a mulher ficou mesmo no sítio onde sofreu a descarga fatal. mas por que razão o outro jornal a colocou no meio do milho? apenas inépcia do jornalista, que pretendia dizer que o poço ficava no meio de um campo de milho mas não soube redigir bem a notícia? ou confusão total?
este é apenas um episódio sem importância de um fenómeno que cada vez ataca mais a comunicação social: a falta de rigor, que arrasta falta de credibilidade.
eu sei que é muito difícil fazer jornalismo. para lá da qualidade profissional dos jornalistas – ou da falta dela –, implica um afã constante atrás das notícias. há que encher o jornal, fazer a 1.ª página, obter a ‘cacha’ mais sensacional, mais surpreendente, de maior impacto. e é muito complicado reconstituir certos acontecimentos, pois os testemunhos são muitas vezes contraditórios.
o jornalismo político ainda é mais complexo. digo-o por experiência própria de muitos anos. porque apresenta uma dificuldade suplementar: os políticos muitas vezes não querem dizer ao jornalista a verdade (ou toda a verdade) e há muita gente por fora a tentar intoxicar o ambiente. ‘vendem-se’ a toda a hora ‘factos’ que vêm a revelar-se falsos ou enganosos. é preciso confirmar e reconfirmar, ultrapassar silêncios e resistências…
esta dificuldade conduz a muitos erros. quem está por dentro dos assuntos verifica a cada passo a quantidade enorme de incorrecções (umas menos graves, outras gravíssimas) que os jornais, as rádios e as televisões cometem.
veja-se mais este exemplo: aquando da recente crise política, no dia em que passos coelho foi pela primeira vez a belém falar com o pr após a demissão de paulo portas, quase todos os jornais disseram que cavaco silva exigia a presença de portas no executivo. o sol, porém, depois de apurar o que se passara, fez a manchete precisamente oposta: cavaco não exigiu portas no governo.
discutiu-se muito isso nesse fim-de-semana. a presidência da república publicou uma nota que confirmava a notícia do sol. mesmo assim, muitas pessoas continuavam a dizer o contrário. tive discussões com amigos que acusavam o sol de ter sido enganado, usado, manipulado. e de ter revelado ingenuidade. até porque a insistência de passos coelho para que portas voltasse atrás e reconsiderasse a saída «irrevogável» do governo parecia confirmar a ‘exigência presidencial’.
os acontecimentos posteriores, porém – com cavaco a fazer o célebre discurso sobre o ‘compromisso de salvação nacional’, que surpreendeu tudo e todos e mostrou que o problema não estava na entrada ou saída de portas –, dariam outra vez razão à manchete do sol, revelando onde estava a verdade. mas tudo isto mostra como o jornalismo político é difícil.
até aqui temos estado a falar de erros involuntários. de erros que resultam da inépcia do jornalista ou da dificuldade de obter informação.
mais graves, porém, são os erros intencionais. as distorções deliberadas da verdade, resultantes de os jornalistas se assumirem como agentes políticos e quererem vender a sua versão dos factos.
este fenómeno agravou-se nestes tempos de crise, em que os ânimos estão muito exaltados. os jornalistas são seres humanos, envolvem-se emotivamente nas questões, e querem influenciar os leitores. não há a preocupação de relatar a verdade – mas sim a de vender a versão que convém ao pensamento do jornalista.
este tipo de jornalismo militante manifesta-se de várias maneiras.
tende a espalhar-se uma prática jornalística de tipo pidesco ou inquisitorial, que vê em cada político um criminoso e está sempre pronto a apontar-lhe o dedo acusador.
por exemplo, na recente posse de rui machete como mne, a grande notícia é que tinha pertencido à sln.
ora, uma coisa é denunciar casos graves, corrupções, atropelos à lei – outra é andar de lupa na mão a espiolhar os currículos de toda a gente e a denunciar que estiveram aqui, estiveram ali, são filhos deste, foram vistos com aquele…
é um jornalismo de devassa que só faz perder tempo, não interessa nada ao país e nada diz sobre a qualidade das pessoas. rui machete é pior ou melhor, mais ou menos sério, mais ou menos competente, por ter pertencido a um conselho qualquer da sln?
outra forma que assume o jornalismo militante é a distorção deliberada dos factos. pega em frases soltas, enquadra-as num contexto diferente e dá-lhes uma interpretação determinada à partida.
assim, ao lermos dois jornais diferentes, podemos ficar com ideias opostas sobre os mesmos factos.
a propósito dos célebres swaps, o correio da manhã transcrevia as seguintes declarações de vítor gaspar: «nada lhe foi transmitido [a maria luís albuquerque]. na transição de pastas, nada foi referido a respeito desta matéria». e ainda: «colocar a questão sobre se tinha conhecimento geral é simplesmente ridículo, não faz sentido». ora, a propósito do mesmo tema, o dn titulava em 1.ª página: ‘gaspar garante que ministra foi informada sobre swaps’.
como se pode fazer jornalismo assim? e como acreditar nos jornalistas?
p.s. – escrevi há 15 dias sobre a invasão da política pelos juízes, e sobre estranhos acórdãos. entretanto, veio a público esta pérola produzida pelo tribunal da relação do porto sobre um funcionário de uma empresa de recolha de lixo apanhado com 2,3g/l de álcool no sangue: «com álcool, o trabalhador pode esquecer as agruras da vida e empenhar-se muito mais a lançar frigoríficos sobre camiões e, por isso, na alegria da imensa diversidade da vida, o público servido até pode achar que aquele trabalhador alegre é muito produtivo e um excelente e rápido removedor de electrodomésticos». estaria o douto magistrado que redigiu este acórdão a trabalhar ‘alegremente’ sob o estimulante efeito do álcool? l
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