se não podes juntar-te a eles, vence-os é o seu primeiro romance e reflecte sobre a crise através de três personagens. como surgiu?
gosto de contar histórias e era um meio que ainda não tinha explorado. é a história de três pessoas, e duas delas são como panelas de pressão. há um clima de insegurança e medo que faz com que todos estejam crispados. quando um filho pede ao pai um chupa-chupa, há uma violência enorme quando o pai diz: não vou comprar nada. não é dirigida à criança. quem dera ao pai ter dinheiro para comprar o que o filho quer. admitir que não se tem outro remédio senão negar isso a um filho faz com que a panela de pressão expluda. este livro tem a ver com isso. há duas personagens a caminhar para um apocalipse em lume brando.
em que sentido?
o fim do mundo é uma coisa que se prolonga. esta é a história desse processo de fim de um mundo e começo de outro. mas para começar alguma coisa nova, outra tem que acabar. a ideia da europa tal como tem sido construída nas últimas décadas está moribunda. algo tem de mudar. mas pode demorar gerações e se calhar já não vamos assistir a esse mundo novo. há também no livro a ideia de que um dos males do mundo são as estatísticas, que tiram força às tragédias individuais. como dizer que houve um acidente e felizmente só houve uma vítima. o felizmente está a mais. a pessoa morreu e as pessoas do seu universo sentem a sua falta. por isso o livro é contado pela voz de três personagens. o apocalipse é pessoal. há uma tentativa de atentado que acaba em desastre, porque os protagonistas são uns pategos, corre-lhes tudo mal. a desgraça acaba mas eles estão completamente desnorteados.
vê esse desnorte em portugal? somos todos uns pategos?
não somos todos uns pategos. mas estamos desnorteados, mesmo os que aparentam ter as maiores certezas. não se sabe que caminho tomar. há uma crispação levada ao limite pela incerteza que começa logo no início do mês: será que vou ter dinheiro até ao fim do mês? incerteza que se agudiza a cada dia do calendário.
uma personagem diz que os portugueses se dividem entre dissidentes, catastrofistas e as boas pessoas – e é assim que caracteriza as suas personagens. porquê?
a dissidência é um traço português, há pessoas que vão ao sabor das conveniências e não têm grande apego ao sítio onde estão ou às pessoas com quem estão. tal como a personagem, que sente que não vai ter condições para cuidar da família e, como não quer que sejam as circunstâncias a obrigá-lo a abandoná-la, fá-lo por iniciativa própria, porque tem coisas importantes para fazer e precisa de não ter nada a perder. e ser catastrofista é um sentimento muito nosso, aquela coisa de ‘está um dia de sol, isto é tempo de terramoto’. já as boas pessoas, quero acreditar, são a maioria. têm um papel muito pequeno em grandes decisões mas acabam por influenciá-las. é uma visão afunilada das coisas. os portugueses são isso, mas também são muito mais.
escreve para televisão e teatro, já passou por projectos como herman enciclopédia, conversas da treta, estado de graça. o que lhe deu mais prazer fazer?
o bocage, que fiz com o mário botequilha. continuo convencido que o miguel guilherme nasceu para fazer de bocage. fará muitas coisas mais, e melhores, mas não consigo pensar noutro actor que o pudesse ter feito como ele. e submersos, série protagonizada pela maria rueff, que escrevi e realizei. foi a experiência mais longa em realização que tive. o paraíso filmes também foi algo que adorei fazer, tal como a a conversa da treta. tenho a sorte de ter trabalhado sempre com pessoas muito talentosas. em todos os trabalhos aprendi alguma coisa. isso é muito bom.
qual a primeira coisa que escreveu para televisão?
a primeira hipótese que tive de escrever profissionalmente foi num projecto, apresentado à rtp, que nunca foi para a frente. mas fui chamado para a equipa do herman enciclopédia. o primeiro sketch que escrevi foi do mike & melga. e chamaram-me para outros trabalhos, comecei a apresentar propostas, dentro e fora das produções fictícias, a trabalhar com a uau e a fazer teatro com a conversa da treta. depois, conheci o tiago rodrigues e comecei a fazer teatro fora do humor. é diferente. o humor tem um lado visceral: se as pessoas riem, funciona. podem ter uma apreciação posterior com juízos de valor acerca da piada, mas a batalha foi ganha com a gargalhada.
mesmo que a pessoa se sinta mal com a gargalhada que deu?
até sabe melhor. quando a pessoa ri mas diz: ‘não me devia rir disto’. o mal não é fazer uma piada sobre pedofilia. o mal é a pedofilia. não me ofendem piadas sobre doenças terminais, ofende-me que pessoas com doenças terminais sejam mal atendidas, passem por dificuldades, tenham que pagar tanto por medicamentos. não faço humor para chocar. se uma piada minha choca, espero que isso seja consequência de uma leitura de uma realidade chocante. não há temas tabu. como dizer que não se pode fazer humor acerca de raças. isso é uma discriminação brutal, é pôr num gueto pessoas que não podem ser protagonistas de uma piada. quando o sacha baron cohoen fez o borat e o bruno acusaram-no de racismo e homofobia. há uma forma de fazer humor em que o humorista se coloca na pele de quem está a criticar. é arriscado porque pode não haver uma descodificação de que é uma paródia que quer mostrar o quão ridículo é ser homofóbico. o problema é que a realidade está a ficar cada vez mais ridícula. num estado dos eua um dos candidatos quer proibir o sexo oral e anal. nessas proibições é que deveria haver temas tabu. não no humor.
as pessoas estão a precisar de se rir?
há a ideia de que em momentos de crise as pessoas precisam mais de um escape. mas gosto mais do humor que é um abre olhos. nesse sentido sim, as pessoas estão a precisar de um riso que abra olhos. de um humor que as faça ver o ridículo de algumas situações do real.