acqua toffana é o seu primeiro romance, agora reeditado. na altura trabalhava como argumentista para cinema e televisão. como surgiu?
acqua toffana é um livro muito curioso porque eu não tinha nenhuma preocupação, não sabia se ia publicar ou não. escrevi-o quase de forma inconsequente, irresponsável, num momento em que estava me desencantando de escrever para o cinema e para a televisão. e comecei o acqua toffana pensando que talvez fosse um projecto para cinema, mas sem saber o que queria. depois vi que era um livro, formado por duas novelas ligadas por um detalhe muito subtil. a experiência de escrever com essa liberdade é uma coisa que só acontece com o seu primeiro livro.
tal como os seus outros romances, também este versa sobre a morte, o assassínio. sempre soube que queria escrever policiais?
brigo um pouco com esse rótulo de escritora policial, acho-o um pouco redutor. mas noutro dia um amigo me disse: ‘olha, na verdade hoje em dia não existe mais esse compromisso dos romances policiais com a escola inglesa, com a escola americana’. desse ponto de vista o meu livro é um romance policial do meu estilo. se ele pode ser classificado de romance policial ele é bem ao meu modo, bem à patrícia melo.
por não seguir a estrutura de um romance policial?
não estão presentes os elementos clássicos do romance policial. não tenho detective, não tenho mistério, não tenho todo aquele processo dedutivo de levar o leitor junto com você a descobrir quem é o assassino. essas coisas não importam no meu romance.
em acqua toffana há duas personagens, uma mulher convencida de que o seu marido é um serial killer e um homem com um desejo enorme de matar. está subjacente um cenário de grande violência urbana. o livro é de 1994. continua actual?
acho que sim. na verdade, ele expõe uma violência muito grande mas o que ele enfoca verdadeiramente é a patologia que essa violência cria. são duas personagens centrais muito perturbadas, um homem que tem um ímpeto assassino, e uma mulher que tem um desejo suicida. e os dois se enamoram. ou melhor, se ‘encontram romanticamente’. nesse aspecto, ele é realmente muito actual, mostra essas personagens urbanas perturbadas com a cidade caótica, violenta. e não só no sentido literal do termo, mas as violências todas que surgem de uma vida urbana numa metrópole como são paulo ou qualquer outra metrópole do mundo.
o que lhe interessa na literatura?
escrevo sobre coisas que não entendo. interessa-me muito a temática urbana, a questão da violência, da injustiça social, a finitude humana. são essas questões que não entendo, ou não aceito, que me motivam a escrever. nem sei se me motivam, mas deixam-me quase obcecada, o meu impulso de escrever vem daí, dessa observação da realidade. a partir daí engatilho o meu processo criativo.
a violência e o mal estão muito presentes ao longo da sua obra. o mal faz parte de todos nós?
é a nossa natureza. acho que a gente tem uma natureza que não é generosa. conceitos como generosidade, respeito ao outro, são conquistas da civilização, não são características inatas do ser humano.
não concorda com rousseau?
de jeito nenhum. acho que essa é uma conquista da civilização, uma conquista cultural, não uma característica humana.
a crítica tem-na comparado com rubem fonseca. neste romance, aliás, refere o assassinato perfeito como a grande arte. sempre recusou essa comparação. porquê?
é um rótulo que não é correcto. estou a escrever o meu décimo romance, tenho a minha dicção, o meu estilo, que é diferente do dele. o que há em comum é, talvez, a temática urbana, que mostra o homem urbano numa situação limite. o rubem introduziu essa literatura no brasil. a literatura urbana no brasil é coisa da década de 60 para cá, até então a gente tinha predominantemente uma literatura regional, até porque a vida urbana no brasil passa a ser efectiva a partir dessa década. até então tínhamos uma população rural muito maior que a população urbana.
já adaptou, e já viu adaptados, romances seus ao cinema. e já adaptou romances de outros escritores, como bufo & spallanzani, de rubem fonseca. gosta de escrever para cinema?
já nem me considero mais argumentista. me desencantei com o cinema e a televisão. acho que o cinema passa por uma grande crise, o que vai levá-lo a buscar uma nova linguagem. as séries televisivas, que tinham uma narrativa entediante, se reinventaram e estão aí umas muito interessantes, há uma nova safra de argumentistas muito boa. mas me distanciei muito. gosto de escrever ficção e dramaturgia. escrever para televisão e para cinema é sempre muito frustrante porque você não tem o domínio da obra. um filme ou uma série é sempre uma obra do director. então é uma coisa que não te realiza por inteiro.
quando sentiu isso?
quando comecei a escrever o acqua toffana que, aliás, terminei em portugal. estava aí vivendo porque estava a trabalhar no projecto do walter avancini, director brasileiro já falecido, que fez um núcleo de dramaturgia para a rtp, e eu escrevi para ele um projecto baseado num facto real, que era uma banqueira popular.
portanto, a banqueira do povo levou-a ao romance?
não diria isso. eu já trabalhava em televisão há muito tempo, foi um processo de desencantamento. mas sem dúvida que a banqueira do povo teve a ver com esse desencantamento. não acredito que exista dramaturgia para 200 capítulos.
quanto tempo esteve em portugal?
um ano e uns meses, em lisboa. morava perto do príncipe real. gostei muito de morar aí, foi muito gostoso, minha filha era pequena, foi uma fase muito boa da vida.
e em que está a trabalhar agora?
estou trabalhando num novo romance, que sai no final do ano, máximo no início do ano que vem, que é realmente um romance policial. acompanha um processo de investigação.
por que decidiu ir por esse caminho?
tenho que fazer jus à minha fama.