ainda o relógio não marca as nove da manhã e já sofia paiva raposo sai de casa, na rua ivens, para rumar ao trabalho. passa pelo largo de são carlos, sobe as escadinhas, atravessa a antónio maria cardoso e o largo camões até chegar à rua do loreto. poucos são aqueles com quem se cruza. a azáfama das noites no bairro alto e na bica já se retirou e a lufa-lufa de trabalhadores e turistas ainda não tomou conta das ruas. a esta hora, o chiado é seu. “conheço as pessoas das lojas e cumprimento todos pelo nome. o chiado é uma aldeia. habituei-me a morar num bairro que é um postal vivo”.
quem mora neste bairro é peremptório: não o trocaria por outro. mas aprendeu a partilhá-lo. “ando a pé para todo o lado e gosto de tomar o pequeno-almoço na rua, mas sei que se for um pouco mais tarde já o farei ao lado de turistas, sobretudo no verão. não me importo nada. vivi muitos anos em cascais, mas apaixonei-me pelo chiado e, há seis anos, comprei casa aqui e já não saio daqui”, conta o chef josé avillez, que não só vive como trabalha no chiado. “muitas vezes passeio entre os meus restaurantes com a jaleca vestida e brincam comigo. de certa forma sinto que há quem já me trate como um símbolo do chiado. no outro dia estava na farmácia da rua garrett e contaram-me que um candidato à junta de freguesia me deu como exemplo numa reunião”, conta o proprietário do belcanto (com uma estrela michelin), do cantinho do avillez, da pizzaria lisboa e que se prepara para inaugurar um novo espaço, o café lisboa, no_largo de são carlos – dedicado a recuperar a memória dos cafés antigos onde o bife era o grande protagonista. “depois de três anos no tavares percebi o crescimento do chiado e tive a certeza de que queria continuar nesta zona e contribuir para a melhorar. acredito que o chiado ainda tem potencial para crescer mais, ao nível nacional e internacional. tem oferta variada de preços, é uma zona bonita, histórica e onde é fácil passear. quero crescer neste bairro. e, além disto, como passo mais de 16 horas nos restaurantes, torna-se mais fácil garantir a qualidade se forem todos próximos uns dos outros”.
o retrato que se vive hoje nas ruas do chiado é bem diferente daquele que tomava conta destas artérias há 25 anos. depois de anos áureos, nos quais era visita obrigatória para as famílias da burguesia, na década de 80 a decadência começou a tomar conta do bairro. sem solução à vista, acabou por ser o incêndio a ditar a zona a repensar-se e renovar-se. “fomos o primeiro, e único, bairro de lisboa a pensar-se como marca e a criar uma associação de valorização. mas a verdade é que tínhamos perdido o chiado tradicional e depois de anos de obras, tínhamos de encontrar um rumo”, diz victor silva, proprietário das lojas gardénia e presidente da associação de valorização do chiado.
não é novidade dizer que lisboa recebe actualmente um número indubitavelmente superior de turistas do que há um quarto de século. apesar de uma comparação directa não ser possível, segundo o instituto nacional de estatística, em agosto de 1988, lisboa e vale do tejo receberam 263.786 hóspedes na hotelaria. em 2012, a área metropolitana de lisboa (grande lisboa e península de setúbal) recebeu 462.204 hóspedes.
é fácil perceber a diferença nas ruas do grande epicentro turístico de lisboa. o chiado é hoje uma babel. português, espanhol, francês, inglês, italiano, alemão… pessoas cruzam-se de mala de viagem e mapa na mão, ao descer a rua garrett é quase impossível não ser parado pelo menos uma vez para facultar informações. estima-se que mais de 200 mil pessoas passem diariamente no eixo baixa-chiado. “por vezes tenho a sensação que aqui estamos sempre na hora de ponta”, confessa sofia paiva raposo. em pequena vinha ao chiado visitar o pai e o avô, que por aqui tinham consultório.
seguiram-se 15 anos fora e, no regresso, há 12 anos, comprou casa no chiado. “era um chiado que estava a tentar renascer e em busca de um rumo, mas já cheio de charme e magnetismo. entretanto deu-se um boom gigantesco. o chiado popularizou-se”.
apaixonada pela zona, ali abriu um ateliê de design gráfico e, há dez anos, lançou o guia convida bairro a bairro, primeiro dedicado ao chiado, e depois alargando-se a outros bairros alfacinhas, onde são dados a conhecer restaurantes, lojas e outras novidades da cidade.
sofia paiva raposo e josé avillez não são casos únicos. a quantidade de pessoas que vivem e trabalham no chiado dá sinais de aumentar. mas os números ainda são baixos. os censos de 2011 dizem que, entre as freguesias mártires, sacramento e são nicolau (que incluem o chiado mas também parte da baixa e que, a partir das eleições autárquicas, passarão a fazer parte da freguesia de santa maria maior) existem 2.345 recenseados. “este tem de ser um bairro com vida, não pode ser um museu”, diz sofia, mas admite que o chiado pode não ser o local mais family friendly. faltam zonas verdes, cinemas, supermercados… “talvez este não seja ainda um bairro de famílias, é um bairro muito nova-iorquino, muito urbano. mas estamos a assistir a um reforço do lado habitacional do chiado”, conta victor silva, da associação de valorização. “temos um supermercado biológico, um ginásio e vamos ter uma escola na boa hora [inserida no complexo do antigo tribunal]”.
o plano de pormenor da recuperação da zona sinistrada do chiado, encomendado a álvaro siza vieira por nuno kruz abecasis foi, em grande parte, feito a pensar em habitar esta zona. “o projecto que a cml estabeleceu dizia que havia que manter o carácter do chiado e que a função de habitação deveria estar presente”, recorda o arquitecto. “até porque o incêndio teve efeitos mais nefastos porque não havia gente a morar na zona que pudesse avisar mais cedo sobre o que se estava a passar”.
apesar dos critérios da cml, depressa se fez sentir a polémica: haveria viabilidade num projecto habitacional para o chiado? “os proprietários tinham interesse em comércio e escritórios, mas a cml insistiu que também queria habitação. paradoxalmente as primeiras fracções a venderem-se foram as habitações. ao ponto de haver requerimentos para ocupar com habitação pisos inicialmente previstos para escritórios”.
a zona tornou-se cada vez mais desejada. os preços dispararam, quer para a habitação quer para o comércio. são “mecanismos de mercado”, diz siza vieira. o mais recente edifício de habitação da zona, o ivens 31, tem 15 apartamentos. entre t1 e t5 duplex, 150 e 370 m2. os preços oscilam entre os 645 mil euros e os 3,57 milhões.
mas também houve o reverso da medalha: algumas lojas de luxo foram desaparecendo – como é o caso da joalheira cartier, que se mudou para a avenida da liberdade. “a verdade é que nunca olhámos para a rua garrett como um local com um posicionamento de luxo. o chiado não é um bairro de lojas à porta fechada”, afiança victor silva.
o chiado é, isso sim, uma zona dinâmica, que reúne turistas e locais. poiso de elites culturais no tempo de eça de queirós e depois no de fernando pessoa, continua hoje a ser o local preferencial para as gentes das artes que por ali pulula entre cafés, galerias de arte e teatros. no mesmo quarteirão cruzam-se vendedores do borda d’água e a mais jovem geração de hipsters. lojas que sobreviveram ao incêndio e a anos de obras – como a luvaria ulisses, a casa pereira, a paris em lisboa, entre outras – convivem com a modernidade que tomou conta da zona. a hotelaria também não pára de crescer. além da hotelaria tradicional – e da qual o hotel do chiado, o hotel do bairro alto, o mercy e o lisboa carmo hotel são os rostos mais visíveis –, há novos formatos como os hotéis boutique ou os apartamentos de aluguer temporário que começam a surgir em muitos edifícios do chiado. e mais, segundo os hoscars 2013, os quatro melhores hostels do mundo ficam em lisboa. três deles na fronteira baixa-chiado. o chiado soma hoje cerca de 300 estabelecimentos comerciais, incluindo restauração. “o chiado é hoje um bairro de comércio, com movimento de passagem intenso, é um ponto de encontro, tem cafés míticos e uma função habitacional. é um centro muito sadio para a cidade de lisboa”, resume siza vieira.
mas nem todos pensam assim. filipa montes pertence à família que há 34 anos detém a bénard, marco da vida do chiado. o seu olhar já está longe de encantado. “esta já não é a zona nobre de lisboa. está decadente, tem pedintes, assaltos e muito lixo. de tal forma que tivemos de contratar um polícia para estar aqui em frente à esplanada”, diz. “é o sinal dos tempos”, acrescenta antónio cardoso, morador na bica e trabalhador na carrinha do fado desde antes do incêndio.
as questões da segurança e da limpeza parecem ser as que afectam a zona de forma mais transversal. “o chiado transmite uma imagem de segurança e por isso as forças responsáveis cometem o erro de quase não enviar policiamento”, desabafa victor silva, consciente de que a zona sofre com o fenómeno dos carteiristas e dos ‘okupas’ que se instalam na via pública. mas o mesmo acontece com a limpeza das ruas. “o problema dos lixos dos restaurantes tem de ser resolvido. por vezes temos de ser nós a despejar o lixo porque senão fica aqui na rua”, revela josé avillez.
para uma zona que chegou a ter a certidão de óbito assinada, parecem apenas pormenores, ajustes numa fórmula de sucesso. o passado negro está cada vez mais distante. mas não se esquece. “foi tão difícil ver um futuro. as cinzas caíram dias a fio, as pessoas deixaram de vir, não conseguiam olhar para o que se passava aqui… e o processo foi tão penoso que nunca adivinhei que o chiado revitalizasse desta maneira. muitas vezes peguei numa mangueira para lavar a rua e quase todos os dias mandávamos a roupa da gardénia para a lavandaria, tanto era o pó que andava no ar com as obras. a verdade é que, durante anos, o chiado continuou a arder, só que em lume brando. houve muita gente que fechou a porta e desistiu”, desabafa victor silva, proprietário das lojas gardénia e presidente da associação de valorização do chiado. mas houve quem ficasse. quem acreditasse. quem acredita. “estamos ‘condenados’ ao sucesso no turismo. e o chiado é, e será, o epicentro de tudo isso”, diz o chef do chiado, josé avillez. ele, claramente, está a cumprir com a sua parte.