Ambiguidades democráticas

A situação no Egipto evoluiu para uma daquelas encruzilhadas que embaraçam as boas almas liberais e as instituições simpáticas e cooperativas. Como uma narrativa pícara de Boccaccio ou Maquiavel, um conto perverso de Gógol ou Púchkin, até uma daquelas ficções curtas de Borges ou Bradbury, quando bruscamente percebemos que o bem e o mal ficaram…

é assim no egipto, onde os clichés ideológicos esmorecem e desaparecem perante a brutalidade dos factos e das imagens dos factos: no começo havia a ditadura de mubarak, uma cleptocracia familiar detestável; os democratas (incluindo a irmandade muçulmana), desceram à rua e a comunidade mediática euroamericana aplaudiu; os generais egípcios, iluminados pelas luzes da liberdade, trataram de pôr o velho ditador a andar e a família na cadeia. depois seguiu-se o processo que, desde o fim da guerra fria, do haiti ao mali, do iraque à rdc, vemos ser aplicado – eleições livres e justas, com ou sem observadores internacionais, mais chá e simpatia, publicação dos resultados, tomada de posse. uma festa.

os irmãos muçulmanos e morsi ganharam as eleições como minoria mais votada, como o nsdap de adolf hitler em 30 de janeiro de 1933.

daí o dilema complicado – ‘o povo é soberano, com a democracia há sempre soluções, os eleitores não se podem enganar, há que respeitar-lhes a vontade’. mas a teoria da bondade popular e democrática pode entrar em crise: os islâmicos começaram a queimar igrejas cristãs, quiseram cortar as liberdades dos não crentes, impor e alargar a prática corânica numa sociedade em parte laicizada? foi a vez dos laicos saírem à rua e dos militares, aproveitando a boleia do povo, prenderem o presidente democraticamente eleito (o primeiro civil do egipto moderno) mais as lideranças dos irmãos.

a seguir, o povo da irmandade saiu, por sua vez, à rua em nome da democracia. e aí os generais entraram ao modo militar e securitário de lidar com protestos de rua – com helicópteros, tanques e as balas dos snipers que anonimamente vão eliminando os agitadores. ou o desgraçado que está próximo do agitador, vá-se lá saber…

assim os irmãos, que começaram por ser maus, que passaram a bons contra mubarak, ainda melhores quando ganharam a eleição, que voltaram a maus no poder, estão outra vez a voltar a bons, já que são mártires e perseguidos. e os militares fazem o percurso contrário.

os ocidentais cortam agora os apoios. mas os países árabes conservadores – sauditas à frente, com os biliões de ajuda (têm sido eles que têm aguentado a economia egípcia, desde que a primavera árabe afugentou os turistas), já disseram que cobrem a parada. ou seja, não será esse o problema.

o problema é que a democracia tem duas versões, que são contraditórias – uma, à rousseau, é a vontade sagrada e absoluta da maioria, que nunca se engana. noutra – ao modo de locke, smith e mill dos founding fathers americanos – é a protecção de um núcleo de direitos individuais, anteriores à própria comunidade política e que devem ser preservados mesmo contra a maioria.

duvido que isto aproveite muito aos egípcios, mas aqui fica.