Autópsia de um filme

Não é fácil descrever Gob Squad’s Kitchen (You’ve Never Had It So Good), a peça do colectivo anglo-alemão Gob Squad, criada em 2007 e em cena na Culturgest hoje, 6, e amanhã, 7. Inspirada no filme homónimo de Andy Warhol, a peça transporta o público para os vibrantes anos 60, década em que a pop…

esta não é, de todo, a cozinha típica de uma dona de casa exemplar dos anos 50. «andy warhol fez imensos filmes nos anos 60. alguns são muito engraçados, outros bastante aborrecidos. em kitchen até fizeram um guião e edie sedgwick é a personagem principal. mas, no filme, limita-se a ficar ali sentada, na cozinha, muito bonita e a pintar as unhas. acho que ela não é propriamente a típica dona de casa desse tempo. mas é muito engraçada. neste filme percebi por que era tão especial. tem piada, é muito carismática. warhol está atrás da câmara, há um actor em cena com ela, e ela está-se sempre a rir da situação, não se lembra das deixas. tinha-lhe sido dito que deveria espirrar para disfarçar. e acaba por espirrar imenso», explica ao sol, por telefone, a caminho do aeroporto para apanhar o avião para lisboa, simon will, um dos membros do colectivo.

uma reconstrução

mas a ideia da peça, que nos leva numa viagem por uma nova iorque underground, pelos seus cinemas e pela ‘fábrica’ do génio da arte pop, não é tanto transpor o filme para palco, mas dissecá-lo, analisando-o, reconstruindo-o, e partindo dele para olhar a anatomia de outros filmes de warhol. «a nossa noite é uma espécie de tentativa de reconstruir o filme. mas não é preciso ser um fã de warhol ou conhecer os seus filmes para perceber o que acontece. vou explicar tudo no início. e até falo português», avança simon.

e qual é, então, o ângulo desta autópsia? «queremos saber como nos lembramos dos filmes, como nos lembramos da história, como nos lembramos de acontecimentos históricos. apesar de usar o warhol, a peça é, sobretudo, sobre o que significam as nossas memórias e de como moldam aquilo que pensamos. a reconstrução do filme é, no fundo, um pretexto para ir até aos anos 60, em que havia um movimento de massas de emancipação, na europa e na américa, centrado numa mudança radical, no feminismo, no black power, os direitos dos gays… do nosso colectivo, apenas um de nós existia nessa altura. temos apenas a mitologia desse tempo, o que aprendemos sobre ele em livros, filmes e com os nossos pais. e com isso tentámos reconstruir o filme e fazer um remake desse tempo».

todo o resto da peça, extremamente interactiva, deverá ser mantido em segredo a pedido do grupo, que quer surpreender o espectador. «quando kitchen começa pensa-se: ‘ah, ok, então vai ser assim’. mas depois, no final da noite, tudo terá mudado para uma direcção completamente diferente da que se esperava no início. e ninguém se dará conta de como isso aconteceu».

rita.s.freire@sol.pt