orlando não vê televisão. diz que lá dentro há um radar que lhe provocou cancro. fala também do vírus ‘z armado’ que, ao que parece, é responsável por catástrofes em todo mundo. está internado mas não é por causa do cancro que nunca teve ou do vírus que não existe.
a doença que o empurrou cá para dentro chama-se psicose esquizofrénica. foi ela quem o arrancou à vida que levava lá fora, como técnico de electrónica, e lhe encheu os olhos com aquele olhar vazio que mantém, mesmo quando fala das coisas de que mais gosta.
“vou a casa, nas festas, e os meus irmãos recebem-me bem. à semana, vou tomar café e passear pela cidade. ah, e trabalho na enfermaria”, conta orlando. está cá há dez anos “para tratar da cabeça” e, neste momento, é um doente “descompensado, com um discurso delirante”. muito provavelmente, passará o resto dos seus dias entre as paredes da instituição.
e a instituição de que se fala é a casa de saúde são joão de deus, em barcelos, o destino mais que provável de quem sofre de doença mental e vive nos distritos de braga ou viana do castelo.
criada em 1928 pela ordem hospitaleira de são joão de deus – instituição religiosa que segue as pisadas do santo nascido em montemor-o-novo, em 1495 –, acolhe actualmente 330 doentes, mas a capacidade de internamento pode chegar aos 361.
ainda assim, muito aquém dos 700 que por aqui andavam nos anos sessenta. não quer isto dizer que estejamos mentalmente mais sãos do que há meio século. a diferença é que, actualmente, a maior parte é atendida nos hospitais locais, que dispõem de serviços próprios.
o número de internamentos nos últimos anos tem-se mantido estável e nem a crise, essa enfermidade que tanto transtorna o país e o atira para o limiar da sanidade, tem feito estragos dignos de registo na saúde mental da região.
“não temos a percepção de uma relação de causa-efeito entre o agravar da crise e o aumento de casos de doença mental ou alcoolismo”, explica a directora da casa de saúde, isabel bragança, legitimada pela lucidez dos números: “em 2012 houve 737 internamentos na unidade de agudos e, este ano, até junho de 2013 houve 348” ou seja, “um comportamento muito semelhante ao período homólogo de 2012”.
residências autónomas
abreu tem 55 anos e anda por aqui há 20. a vida que levava em joane, famalicão, teve de ser interrompida, deixando para trás os três filhos e a ex-mulher. o trabalho na indústria têxtil deu lugar à jardinagem, que hoje lhe preenche os dias, sob a forma de terapia ocupacional.
“quando vim para cá estava doente e o meu problema foi o álcool”, confessa, “mas há 16 anos que não bebo”. não foi, no entanto, a bebida a dar-lhe guia de marcha para as duas décadas que leva aqui internado. ela foi apenas o rastilho que fez explodir a bomba que vivia dentro dele.
“a minha doença é a esquizofrenia. está estável, não tem crises”, diz abreu, fazendo questão de salientar: “nunca fui agressivo para ninguém. mesmo quando bebia álcool”.
as saudades de casa vão sendo matadas com visitas a casa da filha, mas nunca por mais do que dez dias. depois, regressa resignado com o seu destino. “eu, antigamente, dizia que não queria acabar a minha vida aqui assim, mas agora digo que vou acabar. podia ir para os meus filhos, mas não gosto de me meter na vida deles”.
foi a pensar em pacientes como abreu que a casa de saúde criou as residências autónomas. apartamentos fora da instituição, onde um grupo de pacientes tenta levar uma vida o mais parecida possível com a normalidade que vivia antes do internamento.
“lá em casa fazemos de comer, limpamos a casa, lavamos a roupa, arrumamos. fazemos tudo como uma mulher doméstica”, explica, deixando escapar um saudável sorriso.
o projecto arrancou em 2005 com o primeiro apartamento – o segundo abriu em 2009 – e é uma oportunidade para os pacientes fazerem a sua integração na comunidade, com a retaguarda da casa de saúde, que os apoia com psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros e monitores de ateliers.
a residência até podia ser um trampolim para ajudar o doente no seu salto de volta à vida dita normal mas, na maior parte das situações, falta o último passo. “nós capacitamos os doentes mas depois acaba por não haver a resposta final que é a verdadeira integração na comunidade”, através de “um trabalho ou de uma ocupação”, explica a directora clínica, emília pereira.
os doentes estão internados, o que quer dizer que não podem trabalhar, “mesmo se faz parte do seu projecto de reabilitação arranjar um emprego”, faz questão de explicar isabel bragança. “o paciente faz o seu curso de jardinagem e vai tentar arranjar uma colocação no mercado de trabalho. se conseguirmos isso, automaticamente esse doente tem de ter alta, deixa de ter esta retaguarda necessária para a manutenção da sua estabilidade”, além disso, actualmente “têm uma pensão de reforma mínima”, que deixam de ter.
à frente da instituição desde 2007 – foi a primeira mulher leiga a assumir o cargo –, a enfermeira isabel bragança está habituada a lidar com estes labirintos do sistema. tem consciência de que a reabilitação faz-se cada vez mais fora do que cá dentro e foi daí que extraiu as forças para dar o empurrão decisivo ao mais recente projecto da casa.
“há três anos que temos uma equipa de apoio domiciliário que dá uma resposta ‘extra-muros’ da instituição”, refere a directora a propósito da unidade de apoio domiciliário, que assegura a deslocação de técnicos de saúde a casa de quem padece de doença psiquiátrica grave, principalmente os chamados doentes de evolução prolongada, muito dependentes e com necessidade de supervisão.
e há também uma unidade de psicogeriatria, com novas instalações e pessoal treinado no hospital magalhães lemos, e mais um par de projectos que é preciso encaixar no orçamento de pouco mais de 5 milhões de euros, 97 % dos quais vindos do estado (através do serviço nacional de saúde) e o restante oriundo de particulares e de seguros de saúde.
“nós somos pagos através de um acordo de 1982”, salienta isabel bragança, lembrando que na altura a casa “ainda teria quarenta irmãos integrados na sua força de trabalho. agora tem seis, mas só dois no activo”, sendo que os irmãos eram voluntários, disponíveis 24 horas por dia, visto que viviam na instituição.
a casa amarela
apesar dos 85 anos de história, é provável que na região não haja muita gente a reconhecer logo à primeira esta casa pelo nome próprio. a culpa é de uma alcunha que lhe terão posto quase à nascença: a casa amarela.
“penso que, na época, todos os edifícios públicos eram amarelos”, recorda o irmão matias, superior da comunidade e um dos mais antigos da casa. o edifício entretanto mudou de cor. hoje é branco, com telhado vermelho, mas emília pereira prefere dizer que “é policromática devido à diferenciação e diversidade de respostas que aqui temos”.?
só que a alcunha mantém-se, por mais camadas de tinta que lhe derramem pelas paredes abaixo. ao ponto de haver, segundo isabel bragança, uma instituição pública que “na sua factura escreve avenida paulo felisberto e, entre parênteses, casa amarela”.
para exorcizar estes e outros fantasmas, a direcção leva a cabo iniciativas dirigidas especialmente aos mais novos. aqueles que vão a tempo de emendar o olhar enviesado que boa parte dos adultos ainda lança sobre a doença mental.
a directora destaca as visitas de alunos do ensino básico aos ateliers. permite que eles estejam a trabalhar lado a lado “com os utentes que lá estão, por exemplo, num atelier de olaria, a construir presépios”.
ora, correndo bem, as crianças saem de lá com a percepção de que a doença mental não é contagiosa. o mesmo não se pode dizer do preconceito, que se transmite com a rapidez supersónica de uma epidemia.
que o diga barcelos, condenada até à eternidade a carregar o epíteto de ‘cidade dos doidos’. ou dos ‘doudos’, como se diz por cá. por estas bandas, qualquer frase que inclua a expressão ‘vou a barcelos’ é ripostada, quase de rajada, pelo aviso ‘cuidado que eles apanham-te e já não te deixam sair de lá’.
mas há a outra face da moeda, por sinal bem mais valiosa. a casa de saúde e todo o movimento que gera à sua volta – entre visitantes, funcionários e pacientes – dá um empurrãozinho na débil economia da região. emprega 150 pessoas e alavanca um conjunto de negócios à sua volta. “privilegio sempre os fornecedores de proximidade”, acrescenta a directora.
claro que nem sempre a relação da cidade com os inquilinos da casa de saúde foi a mais saudável. houve um tempo, ali entre o final dos anos 20 e início dos anos 30, em que vinham autênticas romarias que ocupavam um terreno vizinho para se divertirem à custa dos pacientes.
“tornou-se moda virem da cidade os desocupados, principalmente ao domingo, empoleirar-se na barreira e de lá dirigirem zombarias e a inquietarem os doentes, como se fossem animais do jardim zoológico”, conta-se no livro história da casa de saúde joão de deus.
o problema levou a várias intervenções policiais, mas só ficou resolvido quando o proprietário do terreno vizinho – também ele um ‘cliente’ habitual do freakshow improvisado – aceitou trocar a nesga de pinhal por uma outra fracção de terreno, que por acaso até valia mais.
o espectáculo domingueiro foi definitivamente cancelado após a construção de um muro. os muros foram, aliás, durante décadas outra imagem de marca da casa. “não eram para proteger a sociedade deles [os pacientes], mas para os proteger a eles da sociedade”, defende a directora clínica.
todos os pacientes são ilustres
o prato preferido de abel é massa à carbonara. aprendeu a fazê-lo na casa de saúde e agora cozinha-o sempre que pode, no apartamento. a timidez força o olhar a procurar refúgio na sombra do chapéu. ao fim de uns minutos à conversa lá vai dizendo que está na casa há quatro anos e é de guimarães, onde vai quase uma vez por mês para ver os dois filhos.
lá fora trabalhou no calçado e na construção mas aqui as funções são outras: “trabalho ali no pavilhão de idosos, ajudo as senhoras a limpar o chão, a fazer as camas. gosto de trabalhar com pessoas de idade”.
terminadas as tarefas diárias, volta ao apartamento autónomo que partilha com outros colegas. “antes de irmos aprendemos a cozinhar e a fazer as tarefas de casa”, recorda abel.
antes deste, um outro abel por cá passou. não agora, mas quando a casa ainda era nova e quase por estrear. o professor abel salazar, catedrático, médico e investigador, esteve cá internado, segundo os relatos da época, para se tratar de um esgotamento.
teve alta em 1931 e foi talvez o paciente mais ilustre da casa, apesar de a directora considerar que todos os pacientes são ilustres. alguns deles, deixam a sua passagem marcada de tal maneira que ainda hoje arrancam um sorriso a quem deles se lembra.
é o caso do zezito de santo antónio, ou bom josé, conhecido pelo capacete e pelo hábito de vestir sobretudo nos dias mais quentes. “era um paciente que há 30 anos era contido em camisas-de-forças. nunca foi possível imaginar que fosse capaz de adquirir hábitos de conduta social”, recorda a directora.
as camisas ou coletes-de-forças são outra imagem de marca dos hospitais psiquiátricos, mas aqui já não são usadas. nem elas, nem os temidos banhos de água fria, ou mesmo as salas com paredes almofadadas. e as controversas lobotomias por cá nunca se chegaram a fazer. só no telhal – casa de saúde pertencente a esta ordem –, pela mão de egas moniz.
no fundo, “muitos destes doentes representam um bocadinho a história da psiquiatria”, explica emília pereira. por exemplo, nos anos trinta, “quando ainda não havia psicofármacos”, recorria-se por vezes a terapêuticas mais agressivas, “mas era o que havia na altura e eram maneiras de conter e até salvaguardar a própria segurança do doente”, sublinha a directora clínica.
voltando ao bom josé, socorremo-nos da ágil memória do irmão matias para recordar algumas das suas façanhas: “durante o dia, se visse uma peça de roupa que lhe interessasse, pegava nela e deitava fora a que estivesse a usar. à noite ia buscar as mantas das camas dos outros e punha-as em cima da cama dele”.
menos hilariantes eram os episódios de agressividade. um deles resultou numa fractura exposta na perna: “queria sair pela janela, desequilibrou-se, caiu e ficou pendurado na grade. quando o pusemos no chão ficou lá como se nada tivesse acontecido. até se queria levantar”.
os muitos anos aqui passados e o trabalho do corpo clínico lá conseguiram fazer do bom josé um bom paciente. “ele acabou por se ligar às pessoas e construir uma vida praticamente toda feliz, para ele. só se sentia mal quando faltavam aquelas pessoas” a quem estava mais ligado, recorda o superior da comunidade.
“a família que ele tinha éramos nós”, salienta a directora. e foi em família – esta família – que morreu há um par de anos. até porque, como explica isabel bragança, “fazemos questão de que, quem vive connosco, morra connosco”.
mas a morte não é para aqui chamada. é cedo para isso. nesta casa tratam-se vidas. e essas, convém que sejam bem vividas, seja cá dentro ou lá fora. e como diz o paciente abreu, “agora está aí o verão, fazemos o farnel em casa e vamos até à póvoa do varzim”.