Encontro de titãs da dança em Lisboa

O  corpo. É sempre o corpo o foco. Esse condutor de emoções, esse espelho de limitações e medos. É o corpo na sua falta de receios que move Wim Vandekeybus no espectáculo   What The Body Does Not Remember. É o corpo nas suas limitações que mostrou o caminho a Raimund Hoghe para criar  …

entre eles há quase 15 anos de diferença e formas diferentes de olhar a dança: um vive do instinto, o outro da análise. mas para ambos a dança é uma arte que questiona os limites. e ambos são nomes incontornáveis quando se fala de dança contemporânea.

há 25 anos, wim vandekeybus era apenas um jovem que fundara uma companhia de dança. nunca pensou que a sua primeira criação coreográfica se viria a afirmar como uma das peças de referência da linguagem contemporânea.   ”fiz 27 peças depois dessa. nunca pensei que sobrevivesse tanto tempo, mas é espantoso ver o que ainda faz à plateia, como ainda é tocante, apesar de as pessoas agora estarem mais habituadas a ver peças de ruptura”, disse ao   sol, ao mesmo tempo que se ria quando questionado sobre o que mudou em si em 25 anos.   ”muitas coisas e talvez não assim tantas. acho que continuo fiel ao meu começo”.

what the body does not remember   subiu pela primeira vez aos palcos em 1987, quando wim tinha apenas 24 anos. a portugal, a peça veio pela primeira vez logo em setembro desse ano de estreia, para apenas regressar agora. é uma obra brutal, mas irónica, cheia de confrontos e de carga física, em que os bailarinos em palco (agora nove, na versão inicial, dez) tanto podem brincar com delicadas plumas como podem atirar tijolos uns aos outros. o risco parece estar sempre presente, mas de uma forma consciente, como se ele próprio fosse um dos bailarinos.   ”gosto de combinar força e fraqueza. como buster keaton, que podia ser tudo, forte e fraco, em palco temos de ser mais do que aquilo que somos. a importância do instinto é a base do meu trabalho, mas é algo que temos de estimular. o instinto pode salvar-nos. em palco temos de aprender a fazer as boas escolhas, sobretudo se andamos a atirar tijolos. sem instinto não somos nada, não temos nada para contar”.

um passo para dois

no   ballet   clássico,   pas de deux   corresponde a um par de homem e mulher que dançam o amor que os une. em alemão, porém,   ”pas de deux   diz-se   schlitte für zwei   que, traduzido literalmente, significa passo para dois”. no   pas de deux   de raimund hoghe, o ponto de partida foi o bailarino japonês takeshi ueno, de 32 anos. os dois já tinham trabalhado juntos e o coreógrafo alemão queria continuar com essa colaboração. até porque a cultura japonesa sempre lhe   ”interessou muito”.

foi assim que nasceu este diálogo cheio de subtilezas. um encontro dentro do desencontro. sem qualquer carga sexual ou amorosa, não há ali um pai e um filho nem um mestre e um pupilo, mas antes   ”dois seres humanos e cada um tem as suas qualidades.   pas de deux   é um encontro entre duas pessoas muito diferentes, com percursos, idades e nacionalidades diferentes”. as diferenças dentro das similaridades. durante duas horas, hoghe cria uma espécie de ambiente de transe – embalado por mahler, gershwin e judy garland, entre outros – e levando a uma viagem à relação entre aqueles dois corpos tão distintos. um exercício consciente:   ”demoro todo o tempo que preciso nas minhas peças e é isso que me permite levar as pessoas a um outro nível”, revela em conversa com osol.

percursos pouco lineares

a dança não esteve sempre escrita nos percursos de raimund hoghe e wim vandekeybus. hoghe nasceu em 1949, em wuppertal, na alemanha. foi pela escrita que começou a trilhar o seu caminho. começou por escrever no semanário alemão   die zeit   e mais tarde, durante uma década, foi dramaturgo de pina bausch no tanztheater wuppertal, tendo em paralelo publicado vários livros. apesar desta proximidade com as letras, hoghe nunca se considerou um teórico. talvez por isso, e porque   ”queria expressar num palco e com corpos aquilo que não conseguia expressar com palavras”, em 1990 começou a coreografar e a dançar.

tinha já 45 anos, em 1994, quando criou o primeiro solo para si próprio,   meinwärts, que viria a dar início, juntamente com as obraschambre séparée   e   another dream, a uma trilogia sobre o século xx. não foi antes, diz, porque o   ”destino”   assim o quis. mas desde então, raimund hoghe não mais parou de dançar e coreografar, acumulando prémios nacionais e internacionais e ignorando aquilo que parecia impossível de ignorar: o seu corpo, pequeno e corcunda, não era o de um bailarino.   ”é claro que o meu corpo acabou por ter sempre uma grande influência, mas nunca se tornou o tema central do meu trabalho”.

wim vandekeybus nasceu em 1963, em herenthout (bélgica), localidade que deixou apenas para frequentar a universidade de lovaina. à data, acreditava que viria a ser psicólogo. mas a temática e a abordagem excessivamente científicas acabaram por ditar que abandonasse a licenciatura.   ”não queria passar o resto da vida a avaliar as outras pessoas”. em 1985, fez uma audição e acabou escolhido para uma produção de jan fabre,   the power of theatrical madness. foi aqui que descobriu o novo caminho da sua vida. apenas um ano depois, e a viver em madrid, criou a companhia de dança ultima vez – porque gosta de pensar que   ”todos os segundos da nossa vida são o último e ver a vida assim torna-a mais especial”.

cruzar linguagens

a sua primeira criação,   what the body does not remember, tornou-se uma peça icónica da dança contemporânea, tendo vencido um bessie award pelo seu carácter inovador. é esta criação que visita agora lisboa, numa altura em que o próprio coreógrafo tem dado nas vistas também na sétima arte: em 2011, o seu filme   monkey sandwich   foi seleccionado para o festival de cinema de veneza.”acho o mundo da dança muito pobre. há uma tentativa desesperada de busca de conteúdo. a dança está atrás em relação a outras formas de arte, por isso gosto de a misturar com linguagens como o teatro, não quero fazer só dança. a verdade é que não temos de contar grandes verdades sobre a vida, nem levarmo-nos demasiado a sério, temos de encarar a vida com alguma comicidade. odeio espectáculos que têm a pretensão de mostrar quão mal o mundo está”   – afirma o criador, que durante o fim-de-semana em lisboa vai também realizar audições em busca de bailarinos para a sua próxima obra.

em comum, hoghe e vandekeybus têm o facto de serem dois nomes maiores da dança contemporânea. mas também o facto de nunca optarem pelo óbvio ou pelo fácil, e procurarem a diferença. tanto raimund hoghe quanto wim vandekeybus vivem para criar, para usar o corpo como veículo, como contador de histórias. hoje lisboa pode ver e ouvir as suas narrativas:   what the body does not remember   no teatro maria matos e   pas de deux   no grande auditório da culturgest.

raquel.carrilho@sol.pt