em vésperas das eleições que levaram à presidência do irão hossan rouhani, o aiatola ali khamnei, líder supremo da nação, fez um discurso histórico para as mulheres do seu país. “eu estava naquela sala quando ele deu aprovação explícita à prática do futebol feminino. disse que o desporto era virtuoso, também para as mulheres. a seguir a essas palavras sentiu-se o ‘boom’ da modalidade”, revela à tabu helena costa, portuguesa de 35 anos que durante o último ano foi seleccionadora iraniana (disputou o acesso à taça asiática) e a coordenadora técnica de todos os escalões de formação do futebol feminino naquele país.
na verdade, nem fora necessário o discurso do líder religioso xiita para que helena sentisse a diferença. antes do irão, ela já havia treinado a selecção do qatar e encontrou uma sociedade mais fechada para as mulheres no minúsculo estado-península do médio oriente, cujos petrodólares garantiram a organização do campeonato do mundo de futebol (masculino) de 2022.
“no qatar, participei em jogos oficiais em que havia jogadoras que não davam autorização para serem fotografadas ou filmadas, uma exigência que era impossível de cumprir em provas organizadas pela fifa. no irão, os pais aceitam que as suas filhas joguem futebol e há até jogadoras que estão prestes a transferir-se para os campeonatos francês e espanhol. nas aldeias, é comum ver-se raparigas e rapazes jogarem juntos. e mesmo no dia-a-dia as minhas jogadoras usam roupas justas e apenas um lenço a cobrir-lhes o cabelo. no qatar, tinha jogadoras que terminavam o treino e vestiam a abaya [vestuário negro que cobre o corpo por completo, excepto a cara]”, explica a treinadora, que chegou ao comando da equipa nacional iraniana pouco tempo depois de esta ter sido afastada de forma insólita dos jogos olímpicos de 2012.
o sonho olímpico das iranianas terminou no momento em que estas recusaram uma imposição da fifa que as obrigava a jogar sem o hijab (lenço): “elas tinham jogado sempre com o seu equipamento habitual, que integrava o lenço, mas na eliminatória decisiva da fase de qualificação a fifa comunicou cinco minutos antes de o jogo começar que o lenço era ilegal: ou elas o tirava ou a selecção seria eliminada. de um lado estava a fifa, mas do outro estava uma lei do seu país. não podiam aceitar aquele ultimato e foram desclassificadas. foi um trauma para muitas. felizmente, essa imposição foi revista”.
o inseparável hijab
helena costa conhece bem o futebol naquela região, a ponto de encontrar muitas semelhanças entre o estilo de jogo das iranianas e o das portuguesas: “têm técnica ao nível das nossas jogadoras, são muito parecidas também a nível físico e têm a mesma determinação e espírito de sacrifício. ainda assim, acho que no irão o futebol feminino está mais desenvolvido… além da superliga, há mais duas divisões de seniores, sem contar com os escalões de formação”.
pelo contrário, foram fugazes os contactos da treinadora com o “povo afável e curioso” das ruas. apenas saiu três vezes da capital teerão, todas para fazer prospecção de talentos noutras regiões, já que a sua vida no irão fez-se “de manhã à noite” dentro da academia de futebol da federação iraniana.
mesmo assim, a treinadora guarda recordações de uma cidade imensa e do trânsito caótico, “onde sete carros cabem em quatro faixas de rodagem”, e das regras para viver em sociedade, que no início custaram a cumprir: “esqueci-me algumas vezes de cobrir a cabeça, mas rapidamente tinha noção disso, assim que as pessoas na rua olhavam para mim de forma fixa… e eu lá voltava para trás para colocar o hijab ou um gorro. para evitar essas situações passei a tê-los sempre à entrada da porta e uns meses depois já me esquecia de os tirar. tornaram-se inseparáveis”.
de alhandra – de onde é natural – a teerão foi um longo percurso, que começou com os vários níveis do curso de treinador de futebol, a que se seguiu uma oportunidade para trabalhar no benfica, onde orientou diversos escalões de formação. já lá vão mais de dez anos.
o reconhecimento no futebol feminino veio através do 1.º de dezembro. no comando técnico das sintrenses conquistou dois campeonatos nacionais e duas taças de portugal entre 2006 e 2008, antes de uma experiência curta no odivelas preceder a aventura asiática, que começou em 2010. primeiro como seleccionadora do qatar, e desde outubro de 2012 pelo irão, após o convite lhe ter surgido através da equipa técnica da selecção masculina, comandada por carlos queiroz, que recentemente garantiu presença no mundial de 2014.
abraço para a posteridade
foi aliás ao lado do treinador português que helena costa se tornou uma celebridade naquele país. o episódio passou-se há cerca de três meses, num jogo qatar-irão, fundamental para garantir a qualificação dos homens para o mundial do brasil.
“queiroz estava castigado e eu vi o jogo ao lado dele, na bancada, uma fila atrás do banco do qatar. nem me apercebi que estava constantemente a ser focada e passámos o jogo a trocar impressões. o irão venceu por 1-0 e assim que o árbitro apitou para o final da partida abraçámo-nos efusivamente. aquele abraço entre um homem e uma mulher transmitido em directo nas televisões do qatar e do irão tornou-se simbólico. tiveram um impacto enorme aquelas imagens de união entre as selecções feminina e masculina: um homem e uma mulher abraçados, sob a bandeira do irão… a partir daí, passei a ser conhecida na rua. taxistas, empregados de loja, miúdos da escola… toda a gente me pede autógrafos. todos os dias, no final do treino, tinha de dar entrevistas à comunicação social iraniana, até decidir pôr um ponto final nisso.”
ao fim de quase um ano no irão, helena costa está de malas feitas. apesar da renovação de contrato lhe ter sido proposta pela federação, a doença de um familiar próximo vai obrigá-la a regressar a portugal, onde ocupará funções como prospectora dos ‘católicos’ do celtic de glasgow.
daqui por algumas semanas, quando regressar em definitivo, ficarão as saudades das suas “meninas de teerão”.