Rumo ao Sul com Saramago

Quando, em 1986, o clima ainda era de intenso optimismo no que tocava à constituição de uma Comunidade Económica Europeia, José Saramago já tinha um pronunciado espírito crítico quanto aos problemas que daí poderiam advir para os países do Sul. Em A Jangada de Pedra, o autor imagina uma Península Ibérica que se separa da…

na semana em que se assinalam os 15 anos da atribuição do nobel da literatura a saramago, o bando volta ao universo ficcional do escritor (em 2005 já tinha adaptado ensaio sobre a cegueira) para pôr em palco esta alegoria sobre uma europa que se desfaz e uma ibéria que anda à deriva, cada vez mais afastada da europa rica do norte.

a jangada de pedra estreia hoje, no teatro são luiz, em lisboa, ficando em cena até 26 de outubro, numa encenação assinada por joão brites (responsável pela dramaturgia) e rui francisco, a que se junta uma partitura original de jorge salgueiro, interpretada ao vivo por seis músicos e inspirada nos cantares alentejanos.

apesar de joão brites afirmar que não foram políticos, mas sim poéticos, os motivos que o levaram a pôr agora a peça em cena, é impossível não reconhecer a actualidade do texto no actual contexto político e social.

‘um texto metafórico’

“quisemos ter um texto metafórico sobre a realidade dos países do sul e dos países do norte. parece-nos oportuno colocar questões: por que razão estamos tão perto da alemanha e não estamos mais próximos do brasil e da américa latina e dos povos do sul? não adiro a esta ideia de uma união, uma federação, na qual sabemos que não vai haver igualdade”, diz joão brites. “neste momento, estamos face a uma tentativa hegemónica alemã, vejo a frança numa atitude colaboracionista e portugal sem capacidade de sair desta bomba. e ainda por cima somos acusados de ser preguiçosos”.

e como, para o encenador, arte e artistas não se podem desligar das grandes questões e reflexões do seu tempo, o texto revelou-se ideal como meio para o fazer. “qual é a função do artista hoje? o que é que podemos fazer com estas armas que temos? acreditamos que criar um certo imaginário, criar ficção, criar metáforas que nos ajudem a viver e a sobreviver, pode ser um gesto de solidariedade e contribuir para que aqueles que mais merecem adquiram mais ânimo”.

numa encenação feita na vertical, com os actores em suspensão numa rede que se vai apertando – numa fuga que pode ser feita apenas para cima, à medida que as paredes se fecham sobre estas seis personagens –, enquanto um misterioso novelo de lã azul se desfia sem cessar, uma ideia sobressai: “não há nenhuma lei no mundo que diga que não se pode viver sem norte”.

rita.s.freire@sol.pt