Retratos angolanos

Hoje, 18 de Outubro, parte de Luanda o VII Raid do Kwanza-Sul – ‘Rumo ao Cazombo com o CFB’. Fiz vários destes raids – o das cidades costeiras, de Luanda à foz do Cunene, o do Norte, o das Lundas.

não podendo participar neste, estive a ler o livro-guia que o miguel anacoreta correia, indefectível pioneiro e passageiro de itinerários lusófonos, coordenou, como fez para os anteriores percursos, reunindo uma colecção singular e utilíssima sobre a história e o presente de angola.

é uma obra excelente. o caminho de ferro de benguela fez-se nos primeiros 30 anos do século xx, para exportar o cobre do katanga através do porto do lobito na costa atlântica. a iniciativa coube ao inglês robert williams, da tanganyika concessions, mas a companhia teve a base em portugal e em angola. a tanganyika tinha cerca de 100 mil km de concessões mineiras e para escoar a produção para os mercados do destino era uma mais fácil alternativa que o porto da beira em moçambique. a construção foi uma obra ciclópica e o caminho de ferro, ao unir uma linha de províncias, cidades, áreas, gentes, criou um mercado nos anos que se seguiram mas para além do litoral. a linha esteve impraticável durante a guerra civil e a reconstrução concluiu-se este ano e está hoje operacional. vou fazê-la na primeira oportunidade.

outro retrato angolano – ou melhor luandense – é o último livro de pepetela que saiu este verão. o autor tem sempre o problema de ter escrito um grande romance – a gloriosa família – que serve sempre de comparação aos novos títulos. mas o grande interesse de o tímido e as mulheres é, a partir da história bem contada, de uma intriga romanesca, dar um retrato da vida, da cidade e da sociedade de luanda hoje.

as personagens – e esta é a novidade do romance – são de classe média. heitor, o herói, que quer ser escritor, é da classe média ‘alta’ (pai funcionário superior, mãe deputada do partido no poder, família com carros, apartamentos, serviço); marisa, por quem se apaixona, pela voz e pelo desejo que a alumeuse encoraja, é jornalista de uma rádio popular; lucrécio, o marido de marisa, é um autodidata livre-pensador, agarrado a uma cadeira de rodas. são média, ‘média’. orquídea, a rapariguinha bonita com quem heitor vai ficar, é neta da quitandeira d. luzitu, vem do musseque, mas tirou o curso e é professora. são média ‘baixa’ e passam à média…

o tempo do romance (sabemo-lo pelas eleições…) é 2012. pela primeira vez não temos no mundo de pepetela, um escritor crítico do regime, uma sociedade bipolar de ricos, muito ricos e pobres, de predadores e vítimas, mas personagens e histórias de classe média, onde a política é um pano de fundo condicionante mas não dominante, nem asfixiante.

a cidade é a cidade como está, nos seus contrastes, nas suas paisagens, a ilha com as praias e os restaurantes, a nova marginal, o trânsito apocalíptico, os bairros populares, luanda-sul, as intrigas políticas e as especulações fundiárias. mas é uma cidade e uma sociedade que vivem e mexem num espaço único em que se fala português, um lugar fascinante e fora dos clichés que se perpetuam ou são perpetuados de longe e de fora pela histeria mediática das ‘crises’.